O que há para o almoço?

“Para o almoço queres uma sanduíche de quê? Temos de encomendar antes das dez para entregarem a tempo” perguntaram-me na manhã do primeiro dia de trabalho no escritório no centro de Londres.  A falta de uma resposta pronta e imediata deve ter provocado na minha colega a necessidade de uma explicação. Este foi o primeiro choque cultural com a cidade onde, desde pequenina, eu sonhava viver. 

Segundo a cultura do escritório onde trabalhei – e a cultura do trabalho em Londres de uma maneira geral – a hora de almoço é curta, em média não mais que meia hora. Para que se otimize o tempo, o melhor é que a refeição seja prática, algo que não necessite de pratos ou talheres e possa ser facilmente transportado para o banco do jardim mais próximo se, por sorte, o sol aparece. Nada melhor que pão com qualquer coisa dentro. Mas não um pãozinho estilo alentejano ou de Mafra, muito menos uma broa de milho ou uma substancial fatia de pão de centeio. 

Regra geral, são duas as opções: pão branco ou integral daquele que vem embalado num saco de plástico, com uma forma quadrada quase perfeita. Demasiado fofo, demasiado branco e muito pouco daquilo que nós, aqui no sul da Europa, consideramos ser pão. Dentro, traz vegetais ou carne ou peixe, em forma de pastas pouco identificáveis. 

Come-se nessa meia hora sem se pensar muito (ou mesmo nada) no ato de nos sentarmos a saborear uma refeição. O objetivo não é o prazer de comer, é ingerir algo de forma funcional e mecânica para cumprir uma exigência orgânica e prosseguir com o dia de trabalho. 

Nunca consegui adaptar-me a esta rotina de almoço. Ao terceiro dia descobri que a empresa de catering que entregava as refeições no escritório também entregava massas: bolonhesa, de vegetais, de salmão. Só não o fazia ali porque nunca ninguém pedira. Até eu chegar. Fui a primeira a encomendar essa opção. Descobri também que, perante o espanto de alguns colegas que já lá estavam há anos, no fundo do armário havia pratos e talheres prontos a serem utilizados. Passei a sentar-me, sozinha, na mesa de refeições até então usada muito ocasionalmente enquanto se esperava que a água da cafeteira elétrica aquecesse para o chá. 

No final da segunda semana, já não estava só. Éramos cinco à mesa. Exceto se o dia estivesse soalheiro. Nesses raros dias, descíamos do 15º andar e ocupávamos um banco no jardim, com vista para o Tamisa, (privilégio de trabalhar num escritório em Waterloo).

Das muitas coisas que o Reino Unido me ensinou, uma delas foi valorizar ainda mais o prazer que é comer. Nunca consegui entrar na mecânica da sanduíche de pão que nem sequer é pão engolida em modo “piloto-automático”. Nesta teimosia em manter-me fiel ao prazer das refeições, contagiei alguns colegas. Ainda hoje, quatro anos depois, aquela mesa de refeições (que ainda por cima tem uma vista fabulosa), é utilizada por eles que trocaram as sanduíches por massas e saladas e outras comidas de prato que entraram na rotina de entregas.

A atenção, o cuidado e o prazer que tiramos de cada refeição é mais que um privilégio. Segundo a teoria d Medicinal Tradicional Chinesa, quando ingerimos algo, não são apenas os nutrientes do alimento que o corpo se prepara para digerir e assimilar. É todo o contexto, desde a forma como nos sentimos à postura, até às pessoas que escolhemos para companhia. Se comemos à pressa, em pé, de forma desatenta e descuidada, o que estamos a oferecer como alimento ao nosso corpo é isso mesmo: estamos a dizer-lhe que se despache com as suas funções fisiológicas, que não há tempo a perder. Que terá de fazer o melhor que pode com aquilo que lhe estamos a dar. Não é nutrição, é sobrevivência.

Para a teoria da Medicinal Oriental, comer é cuidar. Chamar a nós a responsabilidade pela nossa alimentação (e a dos que nos são próximos), é um ato de amor ao alcance de todos que oferece o poder de ser fonte de doença ou saúde. Este é uma das grandes pontes que existem entre a filosofia da Medicina Tradicional Chinesa e a forma como, aqui, no Sul da Europa, em particular povos com influência mediterrânica, nos relacionamos com a comida. A mesa é sinónimo de prazer e celebração. Para nós, sanduíche não é almoço, a pressa não é nutrição. E agora, para cinco ou seis britânicos que ainda hoje se sentam na mesa daquele 15º andar, também não. Comer é um privilégio e um super poder que tem, frequentemente, todas as respostas que precisamos para nos sentirmos bem. 

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