O que é que um elefante albino que viveu no século XVI tem a ver com uma pequena ermida em ruínas, à beira do rio Almansor, em Montemor-o-Novo?
Hanno nasceu em 1510, em Cochim, na Índia. Quatro anos depois, chegou a Lisboa num barco, acompanhado do seu tratador, sendo recebido com pompa e circustância pela corte de D. Manuel I. Como parte das celebrações da sua coroação, o rei português decidiu oferecê-lo ao papa Leão X. E assim, o elefante embarcou numa jornada épica pela Europa até Roma, despertando espanto e admiração por onde quer que passava.
Mas o que é que o pobre elefante, vítima da vaidade e necessidade de ostentação humana, tem a ver com a Ermida de São Pedro da Ribeira? Uma ermida que se crê existir desde o século XIV e que, ao longo da história foi alvo de restauros até hoje estar – literalmente – a cair no esquecimento (embora já exista um plano de reabilitação).
A ligação está no altar-mor que, até 1975, era composto por um retábulo de madeira. No verão desse ano, foi decidido que a peça ficaria melhor na Igreja do Calvário, situada num lugar mais central da cidade alentejana. Quando o retábulo foi retirado, deixou a descoberto uma preciosidade rara: todos aqueles anos, o retábulo escondeu (e protegeu da erosão do tempo) um mural que deixou todos espantados. Não tanto pela figura central de São Pedro com as chaves do Reino na mão, nem pelas magníficas representações da paisagem alentejana e das suas atividades rurais. O que mais surpreendeu foi a presença destacada de um enorme elefante branco, acompanhado pelo seu tratador indiano.
Diz a lenda que o autor do mural, ao fazer uma pausa para se refrescar nas águas do rio, deparou-se com o elefante, também ele numa pausa, antes de prosseguir a sua longa viagem até Roma. A visão improvável do animal impressionou-o tanto, que o pintor não resistiu a eternizá-lo na obra, enquadrado na paisagem alentejana. E lá está ele até hoje, um paquiderme como a figura mais famosa de uma ermida que, ao honrar São Pedro, o guardião das portas do Céu, também honra o encontro entre a criatividade humana e as maravilhas inesperadas da vida.
E ainda bem que assim é. Porque, mesmo na nossa necessidade de homenagem e honra à transcendência e ao divino, é provavelmente quando saímos fora da caixa que nos vamos sentir tocados por Ele.
A Ermida está, por enquanto encerrada, à espera da merecida reabilitação. Mas pode ser visitada virtualmente neste link.
Estará a origem da vida na Terra nas águas termais de uma pequena vila esquecida no interior Alentejano? Em 2012, a imprensa nacional levantou esta pergunta e colocou a vida com vagar vivida na vila de Cabeço de Vide no centro das atenções. Tudo por causa de uma visita de cientistas da NASA que, depois de consultarem a publicação dos resultados de uma análise das propriedades das águas da nascente da Ermida, decidiram aprofundar os estudos feitos pelo Instituto Superior Técnico.
Na altura, o entusiasmo foi grande. As águas, com propriedades terapêuticas conhecidas há cerca de 4 mil anos e que, até então, eram utilizadas por um número relativamente controlado de utentes, poderiam ser a chave para explicar o aparecimento da vida na terra. Ao que parece, nestas águas foi identificado um sistema geológico e hidrogeológico tão raro que, além de Cabeço de Vide e de um local remoto nos EUA, apenas existe em Marte.
As Minhas Raízes
Para os habitantes da pequena freguesia, habituados às lendas e milagres da região, a notícia não causou grande espanto. Para mim, que desde muito pequena, conheço Cabeço de Vide e tantas vezes foi palco de dias mágicos de brincadeiras à volta da pequena piscina e do bosque que a circunda, também não. Ainda hoje, olho para Cabeço de Vide com algum misticismo.
Depois de adulta, as visitas a Cabeço de Vide tornaram-se mais raras e espaçadas. Sendo uma parte da minha família de Alter do Chão, a minha presença na região era frequente, mas o trabalho foi ocupando cada vez mais o meu tempo livre. Assim, nas minhas visitas à família, sobrava pouco tempo para passeios lúdicos às famosas águas. Na verdade, desde que me tornei adulta, consigo identificar com precisão o número de visitas que fiz a esse local porque as associo a momentos importante na minha vida. Foram, muito concretamente, três.
O Primeiro Abalo
A primeira aconteceu enquanto eu estava em plena ascensão da minha carreira no mundo do audiovisual. A minha vida era, aparentemente, perfeita. Tinha um trabalho glamoroso e bem pago, uma posição social vantajosa e uma perspectiva de futuro brilhante. Fui a Cabeço de Vide e às Termas da Sulfúrea visitar os meus avós que estavam lá de férias. Eu ainda não sabia que uma grande mudança estava para acontecer na minha vida, muito menos sabia os ecos que essa mudança teria até hoje. No espaço de seis meses, tudo mudou. A minha estrutura interna foi abalada pela perda precoce de um familiar próximo, o que me levou a questionar toda a existência e a iniciar um processo profundo de busca de sentido da vida. Ironicamente, poucos anos depois, a NASA visitou o local, também à procura de respostas para a mesma questão. A diferença é que as respostas que os cientistas procuravam eram mais biológicas, enquanto que as minhas eram mais filosóficas.
A Segunda Metamorfose
Alguns anos depois, já a NASA tinha percebido que, apesar da sua riqueza científica, Cabeço de Vide provavelmente não foi o local onde a vida na Terra começou, voltei à vila para passar uns dias com o meu avô, agora já sem a companhia da minha avó. Mais uma vez, nos seis meses seguintes, a minha vida voltou a passar por uma grande metamorfose. Ainda não tinha encontrado a resposta para o sentido da vida, mas tinha a certeza de que estava a desperdiçá-la na ilusão de uma carreira estável e de um sucesso aparente. Para me salvar, teria de desapegar-me do materialismo, desapegar-me do vício do trabalho e repensar o meu estilo de vida. Nesse mesmo ano, despedi-me do meu emprego e iniciei um processo de transformação profunda, decidida a construir uma vida onde não tivesse de vender o meu tempo em troca de dinheiro apenas para pagar contas.
Novo Regresso
A terceira visita fiz como utente, uns dez anos mais tarde. Dessa vez, já sem a companhia do meu avô, que entretanto se juntara à minha avó, na dimensão desconhecida da existência. Fui motivada por dores insuportáveis nas costas, num período em que vivia em Alter do Chão e achava que tinha tudo para ser feliz, mas não o era. Estava a afundar-me numa espiral de desvalorização pessoal, alimentada por uma auto-estima frágil e agravada por uma relação psicologicamente abusiva. Precisava urgentemente deuma cura e nem me apercebia disso. Fui religiosamente todos os dias mergulhar o corpo naquelas águas sulfurosas, cujas propriedades terapêuticas são usadas há mais de 3500 anos, desde os tempos da ocupação romana.
Relaxei, melhorei e ouvi, pela voz de um ancião, uma das mais antigas lendas da vila. Segundo ele, em tempos remotos, a povoação original não ficava onde está hoje, mas numa zona mais baixa da colina. Essa povoação foi palco de uma batalha violenta e a quantidade de mortos foi tão grande que não foi possível enterrá-los. Os corpos em decomposição foram a origem de doenças e uma peste alastrou-se entre os sobreviventes, muitos deles gravemente feridos pelo combate. A esperança de salvação era quase nula, pelo que, em desespero, começaram a subir ao cabeço da colina, à procura de ar puro. Milagrosamente, os que chegavam ao topo e inspiravam aquela frescura, recuperavam. A notícia espalhou-se e toda a população subiu ao monte, instalando-se lá, em busca de mais vitalidade. Começaram a chamar o local de Cabeço da Vida, estando assim explicada a origem do nome daquela terra.
Alguns séculos mais tarde, depois de mais uma visita, em apenas dois meses a minha vida também se transformou. Recuperei a vitalidade e o discernimento para me libertar da situação em que me encontrava, voltando ao caminho de uma vida com vagar e propósito. Pouco tempo depois, mudei-me para o Reino Unido, onde vivi uma das experiências mais gratificantes da minha vida: trabalhar como biógrafa de pessoas diagnosticadas com Alzheimer, ajudando a preservar as suas memórias antes que se perdessem para sempre nas mentes fragilizadas pela doença.
Hoje, de volta ao Cabeço
Hoje voltei a esta terra encantada, talvez à procura de um novo milagre. Desta vez, ao contrário de há dez anos, tenho a consciência clara de onde estou. Sei que tenho muito para ser feliz, reuni uma bagagem de experiências nesta minha busca pela simplicidade e essência da vida, mas estou com dificuldade em reencontrar o foco. Muita coisa mudou por aqui. Sabe-se que não foi em Cabeço de Vide que a vida na Terra começou, mas as suas águas continuam a ter propriedades raras e especiais. Esses “15 minutos de fama” geraram sementes que floresceram em percursos pedestres entre o fresco das árvores, na recuperação de património natural e monumental e numa praia fluvial que ajuda a suportar os dias tórridos do verão alentejano. Ficou a recuperação de um castelo, com uma vista a perder de vista para a planície alentejana e que durante muitos anos serviu para defender a terra das invasões, nas várias conquistas e reconquistas aos árabes, num ciclo iniciado em 1160 por D. Afonso Henriques.
Levo daqui a esperança renovada que o meu milagre também está a acontecer. Trago em mim o castelo da experiência e as propriedades raras da sabedoria, que me concedem a capacidade de reajustar a lente do foco. Percebo que também eu não tenho uma resposta clara e objetiva para o sentido da vida, mas tenho o que preciso para continuar a desbravar o meu caminho, rompendo com crenças cristalizadas e viver uma vida fora da norma, com vagar, simplicidade e propósito.
Por vezes acontece-me visitar um sítio que é tão bonito e onde vivo experiências tão boas que regresso com a certeza de que trago comigo tanto material para escrever. São lugares que me oferecem momentos tão especiais que mal posso esperar pelo momento de me sentar e começar a criar texto à volta dessa aventura.
“Uau!” penso, “tantas metáforas, tantos pensamentos e tantos paralelismos com a vida que posso tirar daqui, enquanto partilho a história deste lugar”. Mas quando chega o momento de me sentar ao computador e abrir o programa de edição de texto, nenhuma ideia me surge. Tento escrever uma frase ou outra e nada me agrada. Nenhum caminho de escrita se abre. Por mais que tente é uma sucessão de escreve e apaga que testa a minha paciência e me faz zangar-me comigo mesma e perguntar-me se escrever é mesmo o que quero continuar a fazer.
É precisamente isto que tenho vivido nestes últimos dias, no regresso de uma viagem à Foz do Cobrão, uma aldeia no concelho de Mação, no coração da Beira Baixa. Esta povoação está encaixada entre dois cursos de água (a ribeira do Cobrão e o Rio Ocreza) e é um lugar muito especial. Foi uma visita muito boa mas agora que quero tanto escrever sobre ela, bloqueio e nada do que me sai desta dança dos dedos sobre o teclado, parece ter a qualidade suficiente para a honrar. Escrevo e apago e volto a escrever para voltar a apagar, cada vez mais irritada comigo mesma. Se escrever e contar histórias é a minha paixão (porque é!), isto não devia acontecer-me.
Quero tanto contar sobre o enorme pedregulho que obrigou o ribeiro do Cobrão a encontrar formas de continuar o seu curso e, apesar daquele obstáculo enorme e intimidante, conseguir cumprir o seu propósito de desaguar no rio Ocreza. Que metáfora tão perfeita da natureza para descrever a vida: um pequeno e discreto ribeiro que, na sua descida pela encosta da Serra das Talhadas, se deparou com uma enorme pedra mesmo no centro do seu leito. Mas, em vez de se sentir intimidado, persistiu. Reunindo todos os recursos que fazem da água um dos elementos mais resilientes da natureza, conseguiu, com suavidade, contornar o intimidante obstáculo. Com o passar dos anos, a pedra que parecia intransponível, foi-se moldando à teimosia da água. Este fenómeno natural deu origem a um lugar tão peculiar que se tornou lindíssimo. Mas o meu texto hoje não flui como a água. Está encravado atrás do pedregulho da frustração que cresce perante o meu bloqueio.
Frustra-me saber que deveria ser fácil deixar a imaginação fluir e escrever uma outra história sobre como se talvez não tivesse existido aquela pedra que, em conjunto com a teimosia da água, fez nascer aquele raro fenómeno natural, dificilmente teria prendido o olhar dos romanos que, na época da sua ocupação da Península Ibérica, aí se estabeleceram. Não é um ponto de partida perfeito para desenvolver uma narrativa sobre os obstáculos que a vida nos coloca, os desafios que nos lança, as pedras que nos põe no caminho e como, por vezes, não temos de os destruir ou ultrapassar com pompa e circustância porque, com paciência e flexibilidade, eles revelam-nos afinal uma riqueza e preciosidade imensas na construção do nosso propósito?
Mas não, não me sai nada de jeito. Nada do que escrevo honra a beleza daquele lugar e da história surpreendente dos seus primeiros habitantes. Porque há mais: é que os romanos, pouco depois de chegarem, iludidos pela floresta frondosa e pela água abundante, rapidamente descobriram que a terra não era assim tão fértil para o cultivo. Ainda assim, tal como a água que contornou a pedra, optaram por ficar e explorar mais a fundo o potencial daquele lugar que parecia tão mágico. Em boa hora o fizeram porque o ribeiro escondia mesmo um segredo precioso. Um segredo que precisava de quem tivesse tempo e paciência para o desvendar. Pelo leito do Cobrão viajavam pequenas partículas de ouro. Foi um olhar contemplativo, uma observação demorada e concentrada que permitiram a descoberta deste tesouro. Um tesouro que se transformou na razão para que a população não só decidisse estabelecer-se de forma permanente como também florescer.
Ainda hoje é possível observar as Conheiras – formadas por centenas de pedras roladas, resultantes das lavagens de terra para a extração do ouro – ao longo do seu percurso a dois passos da aldeia e que confirmam a atividade de garimpo do ouro naquele local ao longo dos séculos. Qual a probabilidade de existir uma atividade destas, no interior quase esquecido de Portugal e que durou até à primeira metade do século XX, quando finalmente o ouro começou a escassear? Mas hoje não consigo tornar isto numa história bonita e cativante.
O melhor do meu dia foi quando, ao passear pelas ruas da aldeia, me cruzei com uma senhora que trazia um cão à trela numa mão e um saco de compras na outra. Parecia que estava à minha espera para me contar a sua história, tão bonita como todas as metáforas que a aldeia já me tinha dado até àquele momento.
A D. Aurora (chamo-lhe assim porque não sei o nome dela) aproximou-se de mim, intrigada com a minha presença solitária, num lugar tão improvável para ser visitado por gente de fora. Quando lhe expliquei que gostava de conhecer precisamente lugares improváveis e escrever sobre eles, decidiu acompanhar-me na pequena caminhada e contar-me como tinha ido ali parar.
Esta senhora encantadora nasceu e passou a sua infância em Foz do Cobrão. Mudou-se para Lisboa na juventude e por lá ficou, casou e teve uma filha. Apesar da vida se ter enraizado na capital, no seu íntimo, a D. Aurora mantinha o desejo secreto de voltar à sua aldeia depois da reforma e terminar os seus dias naquele lugar tão bonito mas tão remoto. Nunca se atreveu sequer a mencionar esse seu sonho quer ao marido, quer à filha, muito menos ao neto porque quanto mais os anos passavam e as vidas se firmavam na grande cidade, mais improvável se tornava de realizá-lo.
Foi precisamente o neto, numa viagem à terra da avó no período de férias escolares que, ao passar pela escola da aldeia, disse para a mãe:
– Que linda! Esta sim, é a escola que eu gostava de frequentar.
Esta observação do filho ocupou a mente da mãe durante todo o caminho de regresso a Lisboa. Graças à pandemia, agora trabalhava remotamente e, numa primeira abordagem, não encontrou nenhuma razão para não satisfazer aquele desejo do filho, a estudar numa escola na Amadora onde cada vez encontrava mais desafios quer de aprendizagem, quer de integração.
Em menos de um mês tinham concluído o processo de transferência do rapaz e a mudança para a aldeia estava feita. Trouxe com ela a mãe e o pai. A D. Aurora não só cumpriu o sonho de regressar à sua aldeia como veio acompanhada de toda a família. Num processo fácil, suave e natural de reorientação do curso da vida. Tal como aquele ribeiro. Terminou o seu relato a contar-me que desde que ali está, quase há um ano, não foi só o neto que passou a gostar mais da escola e a ter notas mais elevadas. As suas dores nas costas melhoraram, de tanto exercício que faz a subir e a descer aquelas ruas empedradas.
– Venha para cá também! – disse-me antes de nos despedirmos. E eu, na minha eterna busca de um lugar onde me sinta em casa, disse baixinho para mim mesma:
– Quem sabe?
Para já, opto por me deixar inundar pela sabedoria da água e, suavemente e com toda a gentileza para comigo mesmo, permito que os meus dedos naveguem pelas teclas do computador, sem me julgar pelo que me sai. E eis que surge este texto que aqui entrego.
O que aprendi? Aprendi que por vezes o maior pedregulho que temos de transpor é aquele que transportamos dentro de nós mesmos.
Os melhores planos são aqueles que começam aparentemente falhados para, afinal, conduzirem a experiências incríveis que, de outra forma, teriam ficado perdidas. Esta foi a conclusão que tirei do fim de semana que tinha organizado para participar numa atividade numa aldeia perdida algures na serra da Estrela, onde queria muito ir. Não cheguei à Serra da Estrela, muito menos participei na atividade, mas fui acolhida por um lugar muito improvável que me ofereceu a única coisa que eu, mesmo sem saber, estava realmente a precisar: paz de espírito.
A semana começou com um convite da Junta de Freguesia de uma pequena aldeia da Serra da Estrela para participar e escrever sobre a recriação de uma atividade ancestral, uma forma de preservar os saberes de outrora e passá-los aos mais jovens. Este é o género de trabalho que adoro, em que antecipo falar com os mais velhos e ter a oportunidade de recolher inúmeras histórias e conhecimentos de antigamente. No entanto, a meio da semana, recebi uma mensagem a informar que a atividade iria ser adiada. A minha visita naquela data deixava de fazer sentido.
Entretanto, já tinha desenhado – e iniciado – um percurso de dois dias para lá chegar, com passagem por outros locais que também queria conhecer. Normalmente aproveito as minhas deslocações de trabalho para organizar pequenas roadtrips e conhecer pequenos segredos da minha lista de “desejos de visita” no interior de Portugal.
Em vez de desanimar ou pensar em desistir, acolhi o imprevisto como um convite para abrandar, diminuir o número de quilómetros e demorar-me mais nos locais em que tinha planeado apenas passar. Tinha agora disponíveis os melhores ingredientes para me deixar deslumbrar: tempo e imprevisibilidade.
Cheguei à minha primeira paragem mais cedo que o previsto e, em vez de me acomodar e preparar para um serão de descanso, larguei o carro, a mochila, as solicitações externas, os sapatos e, descalça, comecei a andar pelo caminho que começava mesmo em frente à porta da casinha que me iria acolher nessa noite.
Pracana Cimeira, no concelho de Mação, em plena Beira Baixa, tem uma população de sete habitantes. A estrada alcatroada termina na última casa da aldeia e tudo o que se ouve são os pássaros, o restolhar dos ramos das árvores quando o vento passa e a água que corre abundantemente quer das duas fontes que existem na aldeia, quer no ribeiro que convida a um mergulho.
Em lugares como este, quando o ruído externo abranda, o volume interno do que habita na mente tende a aumentar. A semana anterior fora muita ansiedade e preocupação. E claro que isso tudo veio ao de cima enquanto caminhava sozinha, rodeada de silêncio. Num primeiro momento, zanguei-me comigo mesma por estar num lugar tão privilegiado e, em vez de usufruir, estava a deixar-me invadir por uma sucessão de histórias e preocupações. Depois, obrigando-me a umas quantas respirações mais profundas, optei por, em vez de seguir a enxurrada de drama que a minha cabeça tende a criar, aproveitar para fazer uma espécie de purga interna e deixar ali, enterrados, todos aqueles hábitos mentais que não me estavam ajudar a seguir em frente.
À medida que avançava serra adentro, fui fazendo o exercício de, em vez de seguir a minha mente em imaginações de futuros catastróficos, optar por, a cada passo, sentir os pés a tocarem o solo, tomar consciência da entrega do peso do meu corpo à terra e ouvir com atenção o som de cada uma das dezenas de pássaros que passavam por mim. Relembrei-me de uma das muitas lições resultantes da minha prática de meditação: podemos sempre escolher onde pousar a nossa melhor atenção.
Dando-lhe tempo e permitindo-me a mim dar-me espaço, a Natureza tem o poder de me sossegar. O mundo natural e selvagem, onde tudo é presente, tudo é agora e nada mais existe para além do momento atual, relembra-me que o futuro que crio na minha imaginação é apenas isso mesmo: imaginação! Desta forma, tenho a grande vantagem de poder imaginar (e, consequentemente, criar) cenários diferentes e muito mais alinhados com o que sonho para o meu futuro. As boas notícias é que este é um dom comum a todos os seres humanos.
No dia seguinte acordei cedo, como é meu hábito e, inspirando aquele cheiro a terra e a verde, tudo o que não me apetecia era ir embora. Antes de partir, fiz a promessa de regressar ali ainda este verão e segui para uma outra paragem mágica onde, por ter agora ganho tempo para abrandar devido ao cancelamento inesperado, me esperava – ainda sem o saber – uma senhora com uma história de vida maravilhosa que generosamente partilhou comigo.
Apesar da minha opção de um estilo de vida meio nómada, vivendo nos últimos anos permanentemente entre viagens, os intervalos em que regressava a Lisboa eram preenchidos com uma alegria de estar perto das minhas origens, numa cidade lindíssima, com uma luz muito própria, acolhedora e onde viviam algumas das pessoas que mais amo. Lembro-me em particular dos anos em que trabalhei no Reino Unido e da boa sensação que crescia em mim sempre que se aproximava a data de ir a Portugal de férias ou de fim de semana prolongado.
No rescaldo de uma pandemia, num desses regressos, quando percebi que não iria ser possível voltar a Inglaterra, achei que esta estadia inesperada em Lisboa poderia ser aproveitada para honrar a minha cidade e usufruir dela com tempo, calmamente, permitindo-me espaço para perceber o que iria fazer da minha vida a partir dali. Mal sabia eu que, nessas minhas caminhadas pelas suas ruas, Lisboa iria revelar-me mais do que a confirmação da paixão que tenho por ela.
Passei um par de meses a vaguear por Lisboa, em dias sem pressa e sem planos, apenas a usufruir. No meu vagar numa cidade que, durante tantos anos me conheceu apressada, optei por observar as ruas como se nunca as tivesse visto antes. No Rossio, houve um dia que parei mesmo em frente ao Teatro Nacional D. Maria II. Quantas vezes já teria ali estado? Incontáveis. No entanto, tenho a certeza de que, naquele dia, foi a primeira vez que olhei de facto para a sua fachada. Está lá desde 1846, mas só naquele momento é que os pilares, as janelas e as belas estátuas que guardam a entrada principal começaram a existir para os meus olhos.
Tomei também consciência que, ao contrário de Londres, uma cidade enorme e impessoal onde cheguei a sentir o peso da solidão, em Lisboa não é difícil encontrar velhos amigos. Aconteceu mais que uma vez, nestes passeios sem rumo, encontrar um rosto familiar que se sentou, por acaso, na cadeira vazia ao meu lado no metro. E, aproveitando a coincidência, decidirmos sair juntos na mesma estação para caminhar até uma das esplanada na Rua Cor de Rosa do Cais do Sodré e falar sobre a vida, sobre chegadas, partidas e planos para o futuro. E, no caminho, paramos, de repente, maravilhados pelos artistas de rua a tocar na Rua Augusta, tomando consciência de onde estávamos: uma das mais bonitas ruas do mundo que liga o centro da cidade ao rio Tejo, terminando num impressionante Arco do Triunfo, abrindo-se para o Terreiro do Paço, onde a cidade se rende ao rio.
Foram meses muito bons estes, em que confirmei, neste meu ritmo lento, o meu amor por Lisboa também em lugares tão familiares como o Chiado que me acolhera durante os anos da minha vida académica, onde lojas hipster e restaurantes de cozinha de autor florescem onde quer que haja um pequeno espaço. Ou o velhinho Bairro Alto que guarda alguns dos segredos irreveláveis da minha adolescência que, em paralelo com casas de Fado e restaurantes típicos, acolhe galerias de arte, alfarrabistas, ateliers de artistas, lojas de tatuagens, bares e discotecas.
Lisboa é o local no mundo onde nasci, onde cresci e onde comecei a ser a pessoa que sou hoje. Tem sido testemunha do melhor e do pior que a vida me tem proporcionado. Foi tão bom sentir-me acolhida por ela nesses meses, dando-me tempo para que ela ao mesmo tempo me revelasse que o meu futuro, pelo menos o futuro imediato, não passaria por ela. Nos meus passeios, Lisboa mostrou-me que se estava a deixar conquistar pela gentrificação, pela pressa desmedida, pelo turismo de massas, pela descaracterização. Lisboa estava com pressa de usufruir do protagonismo que os olhos internacionais, de repente, lhe tinham dado e uma parte de si, deixou-se encantar, sem pensar nas consequências. E eu, que estava exatamente no movimento contrário, numa busca pela vida vivida com vagar, de forma mais autêntica e perto da natureza, percebi que, para continuar a amá-la, tinha de me afastar.
Decidir que, agora que iria ficar a viver em Portugal, não era em Lisboa que ia morar, fez dela uma cidade ainda mais bela e ensolarada, confirmando o meu amor incondicional por ela. Sentada tranquilamente junto ao Tejo a comer um gelado artesanal, perto do Cais das Colunas, despedi-me em vésperas de me mudar para o Alentejo, onde vivo atualmente e de onde parto e regresso das minhas viagens e aventuras pelo mundo. Esta decisão reforçou o fascínio e orgulho que tenho pela minha cidade natal em que ainda confio que um destes dias talvez me diga que chegou momento de voltar a acolher-me por inteiro.