Simples não é simplório

Como viver com vagar contribui para a qualidade dos meus dias

Desde que acordamos até que voltamos a adormecer, somos bombardeados por uma quantidade avassaladora de estímulos. Existe demasiada informação diversa a competir pela nossa atenção. Entre o momento em que adormecemos até despertarmos no dia seguinte, vivemos cada vez mais com a sensação de estar numa corrida constante de hiperestimulação. 

Foi assim que me senti nos últimos tempos, desfocada e exausta sem conseguir definir concretamente porquê. Racionalmente, não via razões para que este mal estar fizesse sentido. Afinal, há mais de quinze anos, depois de um burnout que me levou repensar o meu modo de vida, a descobrir a meditação e a praticar Chi Kung, fui ganhando ferramentas que me permitiram adotar uma rotina de vida simples e com vagar, equilibrada entre momentos de trabalho e de abrandamento. 

Mas ultimamente estas minhas práticas mais têm parecido uma espécie de panaceia para tudo o resto do que a sensação de equilíbrio, bem estar e propósito que antes me davam. Sim, nunca neste período abandonei a prática fundamental de meditação mas o resto do meu dia foi sendo preenchido com ruído, informação, inquietação e movimento constantes. 

Continuo a achar que o estímulo é positivo. Contudo, numa época em que somos bombardeados com tanta informação vinda de todas as direções, torna-se vital perceber como podemos encontrar um equilíbrio. Foi por isso que, este verão, após atingir um pico de cansaço físico e mental, reservei uns dias para descansar e redefinir as minhas prioridades. 

Encontrei o lugar ideal para esta pausa na costa alentejana, numa casinha de madeira rodeada de árvores e silêncio, com fraca ligação à internet mas forte aos sons da natureza. Saboreei esse tempo com vagar, aproveitei para respirar fundo e preparar o novo período de trabalho. Chegado setembro, o mês de novos começos, estou mais alinhada e pronta para retomar o caminho que me faz sentido.

Regresso à rotina dos dias com três decisões, alinhadas com o desejo de quebrar o ciclo de estimulação constante que me desfoca e me rouba a criatividade:

Fazer um detox digital sem radicalismos

Lembro-me quando escolhi abraçar um estilo de vida mais simples, fiz um “Low Buy Challenge”. Esta é uma expressão inglesa ligada a um movimento que promove o decrescimento do consumo e pode ser traduzida como Desafio Redução de Compras. A proposta é assumir o compromisso de reduzir a compra de bens que não sejam de primeira necessidade. Por exemplo, uma das regras que defini para mim para este ano foi comprar não mais do que três peças de roupa por estação. Outra foi comer fora apenas 2 vezes por mês. Outra ainda foi abdicar da manicure. Cada pessoa pode definir quais bens não essenciais que está disposto a reduzir e estabelecer os limites que considera razoáveis para si. Este modelo ajudou-me tanto a refletir como a mudar os meus hábitos de consumo que o repliquei na minha relação com a tecnologia e com o tempo online. Ou seja, para um detox digital sem radicalismos, defino à priori um período de tempo em que uso a tecnologia de forma mais controlada. Essas janelas de tempo trazem-me clareza sobre como me sinto quando não cedo ao impulso das redes sociais, dos emails, das notícias e notificações. Cada um fará as regras que melhor se adaptem à sua realidade e à situação com a qual se sente confortável sendo que, no final, o objetivo será sempre reduzir o tempo online. Pode ser uma manhã sem tecnologia, silenciar as notificações das aplicações no telemóvel ou reservar um dia um dia inteiro sem conexão ao digital. Não há certo ou errado, há a medida certa para cada um. No meu caso, percebi que tanto o meu computador como o telemóvel são fontes de muitos estímulos e grandes manipuladores da minha atenção. Desde que adotei a pequena regra “desconectada a partir das oito da noite”, recuperei hábitos mais regulares de leitura e a prática de pequenos hobbies – como o crochet e o origami – que aos poucos, sem me aperceber, tinham perdido espaço para a tecnologia.  

Dar atenção ao que estou a fazer, uma tarefa de cada vez

Sempre que estou envolvida em atividades como limpar a casa, cozinhar, conduzir, fazer exercício físico ou comer, procuro um estímulo para me entreter mentalmente. Podem ser coisas como um filme ou uma série, um podcast, um audiolivro ou um concerto. Imagino que não seja a única a fazer isto e, aparentemente, até é algo inofensivo. Mas comecei a reparar que sempre que me preparava para cozinhar, caminhar ou lavar os dentes, a primeira coisa que fazia era pegar no telemóvel e escolher o que é que ia ouvir para me acompanhar na tarefa. Há pouco tempo quando me preparava para uma viagem de carro entre Lisboa e Montemor-o-Novo percebi que isto pode não ser assim tão linear. Tinha sido um dia intenso de trabalho, reuniões e estímulos vários na capital e estava ansiosa por regressar ao sossego do Alentejo onde vivo. Contudo, dei por mim sentada no carro parada durante mais de 10 minutos, a percorrer a lista de podcasts, incapaz de decidir qual ouvir durante a viagem. Em 10 minutos poderia já ter atravessado a ponte e estar um bocadinho mais perto do meu objetivo: chegar a casa e relaxar. Perguntei-me porque razão precisava eu de estar constantemente cercada de sons. Sim, aparentemente é apenas uma forma de me manter entretida mas, naquele momento, senti que estava a ser mais prejudicial do que benéfico. Num dia tão cheio como aquele pareceu-me que todo o conteúdo que fui absorvendo nos diferentes momentos se estava a transformar numa nuvem indistinta de vozes e sons na minha cabeça. Optei por conduzir em silêncio e deixar a mente vaguear por onde lhe apetecesse. Foi nessa viagem que a ideia para este artigo surgiu! Escrevi-o todo na minha cabeça, com vagar, durante esses sessenta minutos de condução.

Deitar fora, arrumar e simplificar a casa

Podemos ter mais ou menos consciência disso mas estamos constantemente a absorver uma quantidade tão grande de informação ao longo dos nossos dias que muitas vezes nos sentimos assoberbados e nem percebermos porquê. É por isso que aquilo que encontramos em casa casa é tão importante. Sobretudo para quem, como eu, tem uma personalidade introvertida e extremamente sensível a estímulos. Tendo a sentir tudo à minha volta de forma mais intensa e profunda do que a maioria. Por isso, tenho mesmo de ser intencional e seletiva relativamente àquilo a que me quero expor para não me sentir esgotada. Sim eu sei que muitas vezes é algo que não podemos propriamente escolher, seja por questões profissionais, sejam obrigações que tenhamos de cumprir. Mas podemos criar um ambiente calmo e propício ao relaxamento nas nossas casas. Neste momento vivo numa casa que é uma espécie de “casa entre casas”, enquanto construo o caminho para me mudar para uma casa ainda mais imersa na natureza. Esta situação de viver provisoriamente tem-me ajudado a refletir e a praticar o processo de descomplicar e destralhar e, consequentemente, a constatar como é importante que o que me cerca me transmita paz de espírito, conforto e segurança. 

Promover o bem estar pessoal é uma responsabilidade individual que nem é tão simples como ler um artigo online ou ver um video no youtube ou tomar os suplementos da moda. Nem tão complicada como muitas vezes nos parecem os programas de desenvolvimento pessoal dos novos influencers, os retiros de detox instagramáveis ou as dietas restritivas com alegados super-alimentos.

O meu processo é garantir o equilíbrio através de um estilo de vida simples, vivida com vagar. Quando tenho muitas solicitações profissionais, preciso de momentos de solidão, silêncio e contemplação. Em épocas de maior azáfama, organizo os dias sem esquecer momentos de pausa. Se passei um dia inteiro a olhar para o computador, não o termino sem uma caminhada entre as árvores. Se estou em períodos de muita interação social, sei que vou ter de reservar um dia no calendário para ser ermita.   

Claro que preciso de estímulos na minha vida, como toda a gente. Todos precisamos de estar em contacto com outras ideias, pessoas diferentes, locais diferentes, novas perspectivas. Mas é igualmente importante perceber quando é demais e saber o que fazer para recuperar. Porque a vida é para estarmos bem, o maior número de horas possível. De preferência, com vagar.

Água mole em pedra dura

Por vezes acontece-me visitar um sítio que é tão bonito e onde vivo experiências tão boas que regresso com a certeza de que trago comigo tanto material para escrever. São lugares que me oferecem momentos tão especiais que mal posso esperar pelo momento de me sentar e começar a criar texto à volta dessa aventura. 

“Uau!” penso, “tantas metáforas, tantos pensamentos e tantos paralelismos com a vida que posso tirar daqui, enquanto partilho a história deste lugar”. Mas quando chega o momento de me sentar ao computador e abrir o programa de edição de texto, nenhuma ideia me surge. Tento escrever uma frase ou outra e nada me agrada. Nenhum caminho de escrita se abre. Por mais que tente é uma sucessão de escreve e apaga que testa a minha paciência e me faz zangar-me comigo mesma e perguntar-me se escrever é mesmo o que quero continuar a fazer. 

É precisamente isto que tenho vivido nestes últimos dias, no regresso de uma viagem à Foz do Cobrão, uma aldeia no concelho de Mação, no coração da Beira Baixa. Esta povoação está encaixada entre dois cursos de água (a ribeira do Cobrão e o Rio Ocreza) e é um lugar muito especial. Foi uma visita muito boa mas agora que quero tanto escrever sobre ela, bloqueio e nada do que me sai desta dança dos dedos sobre o teclado, parece ter a qualidade suficiente para a honrar. Escrevo e apago e volto a escrever para voltar a apagar, cada vez mais irritada comigo mesma. Se escrever e contar histórias é a minha paixão (porque é!), isto não devia acontecer-me.

Quero tanto contar sobre o enorme pedregulho que obrigou o ribeiro do Cobrão a encontrar formas de continuar o seu curso e, apesar daquele obstáculo enorme e intimidante, conseguir cumprir o seu propósito de desaguar no rio Ocreza. Que metáfora tão perfeita da natureza para descrever a vida: um pequeno e discreto ribeiro que, na sua descida pela encosta da Serra das Talhadas, se deparou com uma enorme pedra mesmo no centro do seu leito. Mas, em vez de se sentir intimidado, persistiu. Reunindo todos os recursos que fazem da água um dos elementos mais resilientes da natureza, conseguiu, com suavidade, contornar o intimidante obstáculo. Com o passar dos anos, a pedra que parecia intransponível, foi-se moldando à teimosia da água. Este fenómeno natural deu origem a um lugar tão peculiar que se tornou lindíssimo. Mas o meu texto hoje não flui como a água. Está encravado atrás do pedregulho da frustração que cresce perante o meu bloqueio.

Frustra-me saber que deveria ser fácil deixar a imaginação fluir e escrever uma outra história sobre como se talvez não tivesse existido aquela pedra que, em conjunto com a teimosia da água, fez nascer aquele raro fenómeno natural, dificilmente teria prendido o olhar dos romanos que, na época da sua ocupação da Península Ibérica, aí se estabeleceram. Não é um ponto de partida perfeito para desenvolver uma narrativa sobre os obstáculos que a vida nos coloca, os desafios que nos lança, as pedras que nos põe no caminho e como, por vezes, não temos de os destruir ou ultrapassar com pompa e circustância porque, com paciência e flexibilidade, eles revelam-nos afinal uma riqueza e preciosidade imensas na construção do nosso propósito?

Mas não, não me sai nada de jeito. Nada do que escrevo honra a beleza daquele lugar e da história surpreendente dos seus primeiros habitantes. Porque há mais: é que os romanos, pouco depois de chegarem, iludidos pela floresta frondosa e pela água abundante, rapidamente descobriram que a terra não era assim tão fértil para o cultivo. Ainda assim, tal como a água que contornou a pedra, optaram por ficar e explorar mais a fundo o potencial daquele lugar que parecia tão mágico. Em boa hora o fizeram porque o ribeiro escondia mesmo um segredo precioso. Um segredo que precisava de quem tivesse tempo e paciência para o desvendar. Pelo leito do Cobrão viajavam pequenas partículas de ouro. Foi um olhar contemplativo, uma observação demorada e concentrada que permitiram a descoberta deste tesouro. Um tesouro que se transformou na razão para que a população não só decidisse estabelecer-se de forma permanente como também florescer. 

Ainda hoje é possível observar as Conheiras – formadas por centenas de pedras roladas, resultantes das lavagens de terra para a extração do ouro – ao longo do seu percurso a dois passos da aldeia e que confirmam a atividade de garimpo do ouro naquele local ao longo dos séculos. Qual a probabilidade de existir uma atividade destas, no interior quase esquecido de Portugal e que durou até à primeira metade do século XX, quando finalmente o ouro começou a escassear? Mas hoje não consigo tornar isto numa história bonita e cativante.

O melhor do meu dia foi quando, ao passear pelas ruas da aldeia, me cruzei com uma senhora que trazia um cão à trela numa mão e um saco de compras na outra. Parecia que estava à minha espera para me contar a sua história, tão bonita como todas as metáforas que a aldeia já me tinha dado até àquele momento.

A D. Aurora (chamo-lhe assim porque não sei o nome dela) aproximou-se de mim,  intrigada com a minha presença solitária, num lugar tão improvável para ser visitado por gente de fora. Quando lhe expliquei que gostava de conhecer precisamente lugares improváveis e escrever sobre eles, decidiu acompanhar-me na pequena caminhada e contar-me como tinha ido ali parar. 

Esta senhora encantadora nasceu e passou a sua infância em Foz do Cobrão. Mudou-se para Lisboa na juventude e por lá ficou, casou e teve uma filha. Apesar da vida se ter enraizado na capital, no seu íntimo, a D. Aurora mantinha o desejo secreto de voltar à sua aldeia depois da reforma e terminar os seus dias naquele lugar tão bonito mas tão remoto. Nunca se atreveu sequer a mencionar esse seu sonho quer ao marido, quer à filha, muito menos ao neto porque quanto mais os anos passavam e as vidas se firmavam na grande cidade, mais improvável se tornava de realizá-lo. 

Foi precisamente o neto, numa viagem à terra da avó no período de férias escolares que, ao passar pela escola da aldeia, disse para a mãe: 

–  Que linda! Esta sim, é a escola que eu gostava de frequentar. 

Esta observação do filho ocupou a mente da mãe durante todo o caminho de regresso a Lisboa. Graças à pandemia, agora trabalhava remotamente e, numa primeira abordagem, não encontrou nenhuma razão para não satisfazer aquele desejo do filho, a estudar  numa escola na Amadora onde cada vez encontrava mais desafios quer de aprendizagem, quer de integração. 

Em menos de um mês tinham concluído o processo de transferência do rapaz e a mudança para a aldeia estava feita. Trouxe com ela a mãe e o pai. A D. Aurora não só cumpriu o sonho de regressar à sua aldeia como veio acompanhada de toda a família. Num processo fácil, suave e natural de reorientação do curso da vida. Tal como aquele ribeiro. Terminou o seu relato a contar-me que desde que ali está, quase há um ano, não foi só o neto que passou a gostar mais da escola e a ter notas mais elevadas. As suas dores nas costas melhoraram, de tanto exercício que faz a subir e a descer aquelas ruas empedradas. 

– Venha para cá também! – disse-me antes de nos despedirmos. E eu, na minha eterna busca de um lugar onde me sinta em casa, disse baixinho para mim mesma:

– Quem sabe? 

Para já, opto por me deixar inundar pela sabedoria da água e, suavemente e com toda a gentileza para comigo mesmo, permito que os meus dedos naveguem pelas teclas do computador, sem me julgar pelo que me sai. E eis que surge este texto que aqui entrego. 

O que aprendi? Aprendi que por vezes o maior pedregulho que temos de transpor é aquele que transportamos dentro de nós mesmos.  

Quando os planos falham

Os melhores planos são aqueles que começam aparentemente falhados para, afinal, conduzirem a experiências incríveis que, de outra forma, teriam ficado perdidas. Esta foi a conclusão que tirei do fim de semana que tinha organizado para participar numa atividade numa aldeia perdida algures na serra da Estrela, onde queria muito ir. Não cheguei à Serra da Estrela, muito menos participei na atividade, mas fui acolhida por um lugar muito improvável que me ofereceu a única coisa que eu, mesmo sem saber, estava realmente a precisar: paz de espírito.

A semana começou com um convite da Junta de Freguesia de uma pequena aldeia da Serra da Estrela para participar e escrever sobre a recriação de uma atividade ancestral, uma forma de preservar os saberes de outrora e passá-los aos mais jovens. Este é o género de trabalho que adoro, em que antecipo falar com os mais velhos e ter a oportunidade de recolher inúmeras histórias e conhecimentos de antigamente. No entanto, a meio da semana, recebi uma mensagem a informar que a atividade iria ser adiada. A minha visita naquela data deixava de fazer sentido.

Entretanto, já tinha desenhado – e iniciado – um percurso de dois dias para lá chegar, com passagem por outros locais que também queria conhecer. Normalmente aproveito as minhas deslocações de trabalho para organizar pequenas roadtrips e conhecer pequenos segredos da minha lista de “desejos de visita” no interior de Portugal. 

Em vez de desanimar ou pensar em desistir, acolhi o imprevisto como um convite para abrandar, diminuir o número de quilómetros e demorar-me mais nos locais em que tinha planeado apenas passar. Tinha agora disponíveis os melhores ingredientes para me deixar deslumbrar: tempo e imprevisibilidade. 

Cheguei à minha primeira paragem mais cedo que o previsto e, em vez de me acomodar e preparar para um serão de descanso, larguei o carro, a mochila, as solicitações externas, os sapatos e, descalça, comecei a andar pelo caminho que começava mesmo em frente à porta da casinha que me iria acolher nessa noite. 

Pracana Cimeira, no concelho de Mação, em plena Beira Baixa, tem uma população de sete habitantes. A estrada alcatroada termina na última casa da aldeia e tudo o que se ouve são os pássaros, o restolhar dos ramos das árvores quando o vento passa e a água que corre abundantemente quer das duas fontes que existem na aldeia, quer no ribeiro que convida a um mergulho.

Em lugares como este, quando o ruído externo abranda, o volume interno do que habita na mente tende a aumentar. A semana anterior fora muita ansiedade e preocupação. E claro que isso tudo veio ao de cima enquanto caminhava sozinha, rodeada de silêncio. Num primeiro momento, zanguei-me comigo mesma por estar num lugar tão privilegiado e, em vez de usufruir, estava a deixar-me invadir por uma sucessão de histórias e preocupações. Depois, obrigando-me a umas quantas respirações mais profundas, optei por, em vez de seguir a enxurrada de drama que a minha cabeça tende a criar, aproveitar para fazer uma espécie de purga interna e deixar ali, enterrados, todos aqueles hábitos mentais que não me estavam ajudar a seguir em frente. 

À medida que avançava serra adentro, fui fazendo o exercício de, em vez de seguir a minha mente em imaginações de futuros catastróficos, optar por, a cada passo, sentir os pés a tocarem o solo, tomar consciência da entrega do peso do meu corpo à terra e ouvir com atenção o som de cada uma das dezenas de pássaros que passavam por mim. Relembrei-me de uma das muitas lições resultantes da minha prática de meditação: podemos sempre escolher onde pousar a nossa melhor atenção.

Dando-lhe tempo e permitindo-me a mim dar-me espaço, a Natureza tem o poder de me sossegar. O mundo natural e selvagem, onde tudo é presente, tudo é agora e nada mais existe para além do momento atual, relembra-me que o futuro que crio na minha imaginação é apenas isso mesmo: imaginação! Desta forma, tenho a grande vantagem de poder imaginar (e, consequentemente, criar) cenários diferentes e muito mais alinhados com o que sonho para o meu futuro. As boas notícias é que este é um dom comum a todos os seres humanos.

No dia seguinte acordei cedo, como é meu hábito e, inspirando aquele cheiro a terra e a verde, tudo o que não me apetecia era ir embora. Antes de partir, fiz a promessa de regressar ali ainda este verão e segui para uma outra paragem mágica onde, por ter agora ganho tempo para abrandar devido ao cancelamento inesperado, me esperava – ainda sem o saber – uma senhora com uma história de vida maravilhosa que generosamente partilhou comigo.

Mas essa fica para a próxima publicação!

Amores e Despedidas em Lisboa

Lisboa. Contemplar o Tejo

Apesar da minha opção de um estilo de vida meio nómada, vivendo nos últimos anos permanentemente entre viagens, os intervalos em que regressava a Lisboa eram preenchidos com uma alegria de estar perto das minhas origens, numa cidade lindíssima, com uma luz muito própria, acolhedora e onde viviam algumas das pessoas que mais amo. Lembro-me em particular dos anos em que trabalhei no Reino Unido e da boa sensação que crescia em mim sempre que se aproximava a data de ir a Portugal de férias ou de fim de semana prolongado.

No rescaldo de uma pandemia, num desses regressos, quando percebi que não iria ser possível voltar a Inglaterra, achei que esta estadia inesperada em Lisboa poderia ser aproveitada para honrar a minha cidade e usufruir dela com tempo, calmamente, permitindo-me espaço para perceber o que iria fazer da minha vida a partir dali. Mal sabia eu que, nessas minhas caminhadas pelas suas ruas, Lisboa iria revelar-me mais do que a confirmação da paixão que tenho por ela.

Passei um par de meses a vaguear por Lisboa, em dias sem pressa e sem planos, apenas a usufruir. No meu vagar numa cidade que, durante tantos anos me conheceu apressada, optei por observar as ruas como se nunca as tivesse visto antes. No Rossio, houve um dia que parei mesmo em frente ao Teatro Nacional D. Maria II. Quantas vezes já teria ali estado? Incontáveis. No entanto, tenho a certeza de que, naquele dia, foi a primeira vez que olhei de facto para a sua fachada. Está lá desde 1846, mas só naquele momento é que os pilares, as janelas e as belas estátuas que guardam a entrada principal começaram a existir para os meus olhos.

Tomei também consciência que, ao contrário de Londres, uma cidade enorme e impessoal onde cheguei a sentir o peso da solidão, em Lisboa não é difícil encontrar velhos amigos. Aconteceu mais que uma vez, nestes passeios sem rumo, encontrar um rosto familiar que se sentou, por acaso, na cadeira vazia ao meu lado no metro. E, aproveitando a coincidência, decidirmos sair juntos na mesma estação para caminhar até uma das esplanada na Rua Cor de Rosa do Cais do Sodré e falar sobre a vida, sobre chegadas, partidas e planos para o futuro. E, no caminho, paramos, de repente, maravilhados pelos artistas de rua a tocar na Rua Augusta, tomando consciência de onde estávamos: uma das mais bonitas ruas do mundo que liga o centro da cidade ao rio Tejo, terminando num impressionante Arco do Triunfo, abrindo-se para o Terreiro do Paço, onde a cidade se rende ao rio.

Foram meses muito bons estes, em que confirmei, neste meu ritmo lento, o meu amor por Lisboa também em lugares tão familiares como o Chiado que me acolhera durante os anos da minha vida académica, onde lojas hipster e restaurantes de cozinha de autor florescem onde quer que haja um pequeno espaço. Ou o velhinho Bairro Alto que guarda alguns dos segredos irreveláveis da minha adolescência que, em paralelo com casas de Fado e restaurantes típicos, acolhe galerias de arte, alfarrabistas, ateliers de artistas, lojas de tatuagens, bares e discotecas. 

Lisboa é o local no mundo onde nasci, onde cresci e onde comecei a ser a pessoa que sou hoje. Tem sido testemunha do melhor e do pior que a vida me tem proporcionado. Foi tão bom sentir-me acolhida por ela nesses meses, dando-me tempo para que ela ao mesmo tempo me revelasse que o meu futuro, pelo menos o futuro imediato, não passaria por ela. Nos meus passeios, Lisboa mostrou-me que se estava a deixar conquistar pela gentrificação, pela pressa desmedida, pelo turismo de massas, pela descaracterização. Lisboa estava com pressa de usufruir do protagonismo que os olhos internacionais, de repente, lhe tinham dado e uma parte de si, deixou-se encantar, sem pensar nas consequências. E eu, que estava exatamente no movimento contrário, numa busca pela vida vivida com vagar, de forma mais autêntica e perto da natureza, percebi que, para continuar a amá-la, tinha de me afastar. 

Decidir que, agora que iria ficar a viver em Portugal, não era em Lisboa que ia morar, fez dela uma cidade ainda mais bela e ensolarada, confirmando o meu amor incondicional por ela. Sentada tranquilamente junto ao Tejo a comer um gelado artesanal, perto do Cais das Colunas, despedi-me em vésperas de me mudar para o Alentejo, onde vivo atualmente e de onde parto e regresso das minhas viagens e aventuras pelo mundo. Esta decisão reforçou o fascínio e orgulho que tenho pela minha cidade natal em que ainda confio que um destes dias talvez me diga que chegou momento de voltar a acolher-me por inteiro.

O discreto segredo espiritual da Catalunha

Seu de Manresa

O que há de tão especial em Manresa, uma cidade industrial na Catalunha central, em Espanha? Por que haveria de querer lá ir? Mal sabia eu que, naquela manhã em que todo o meu ser resistia em entrar no autocarro que me levaria até lá, aquela viagem estava prestes a mudar radicalmente a minha perceção sobre a fé. 

À primeira vista, parecia que, além da famosa Basílica de Santa Maria de la Seu e da caverna de Santo Inácio de Loyola, pouco mais havia de interesse naquela cidade. A minha mente continuava a dizer-me que não valia a pena a visita. Ficar mais alguns dias em Montserrat a explorar aquele local mais profundamente parecia-me uma opção melhor. Mas, apesar do ruído do meu cérebro, alguma coisa que eu não sabia explicar empurrava-me para Manresa.

À chegada, fui recebida por um tempo nublado, húmido e desconfortavelmente quente. Não ajudou com o meu mau humor. Andei para cima e para baixo na rua onde me esperavam para almoçar, mas não consegui encontrar o restaurante que me prometera a melhor paella vegetariana da região. Quando decidi olhar para cima em vez de para baixo, encontrei-o: no primeiro andar de um prédio, a porta abria-se para uma sala de jantar simples, minimalista e elegante. Quando a paella chegou, acompanhada pelo sorriso acolhedor do chef, percebi que estava a esforçar-me demais para manter o mau humor. Tudo estava delicioso e feito com tanta dedicação. Nem que fosse apenas para honrar o trabalho do Chef, seria melhor se me rendesse às circunstâncias, esforçando-me por abraçar um estado de espírito mais relaxado.

Tinha tomado a primeira decisão sábia do dia: alterar o meu estado de espírito. Como frequentemente acontece, a realidade começou a mudar em concordância. A partir de então, Manresa começou a revelar-se como o lugar certo para estar naquele preciso momento . Da minha parte, só precisava estar disposta a dar-lhe uma chance.

Conheci Jordi Piñero, um historiador e investigador cujo trabalho se foca nos aspetos holísticos dos monumentos históricos de Manresa. Jordi convidou-me a caminhar com ele até à Catedral enquanto explicava como foi cuidadosamente construída num lugar muito especial: uma forte corrente telúrica – o movimento geomagnético gerado pelo campo magnético da Terra que fluía paralelo à superfície terrestre. Ou, de outra perspetiva, um campo de energia com o poder de influenciar o nosso bem-estar. O meu cérebro, mais dado a ceticismos, olhava para uma igreja católica gótica do século XVI e perguntava-se se isso não seria apenas uma coincidência. Ou conversa para turistas! Naquela época, as pessoas não tinham acesso ao conhecimento que temos atualmente e certamente não possuiam os recursos científicos para analizar todas essas correntes e movimentos geomagnéticos.

Enquanto o seguia para dentro do edifício, Jordi explicou que a estrutura em forma de cruz é uma representação da figura humana de braços abertos. Ao longo da linha central, é possível observar sete círculos, “Os 7 chakras,” disse. Perguntei-lhe como é que os nossos antepassados sabiam? Como é que uma instituição tão conservadora como a Igreja Católica permitiu estas crenças? Jordi limitou-se a encolher os ombros e explicar que os chakras têm muitos nomes. “Representam o potencial humano para a evolução espiritual. É um conceito universal.”

A teoria “tudo está conectado” fez tanto sentido naquele local. Agora parecia óbvia a relação entre os conceitos de diferentes religiões e crenças, representadas num único monumento construído há mais de cinco séculos. Não me importava de ter ficado ali o resto da a tarde a ouvir as histórias de Jordi. A minha longa busca para entender a fé, o divino e o significado da vida humana estava ansiosa por saber mais. Mas, embora ainda não soubesse, havia mais à minha espera.

Segui para a Gruta de Santo Inácio, um local de peregrinação onde se crê que o Santo passou vários meses a meditar e a escrever o seu famoso livro de Exercícios Espirituais. Santo Inácio chegou ali depois de uma longa caminhada de 2000 km desde Loyola, no País Basco. Fê-lo com o intuito de descobrir, entender e consolidar a sua conexão com Jesus.

Fui recebida por um padre jesuíta que abriu a porta da caverna e me convidou a entrar. O padre narrou brevemente a história da vida do Santo e concluiu: “Para descobrir a luz, é preciso conquistar o ego. Para conquistar o ego, é preciso render-se.” A rendição sempre foi um desafio para mim, uma controladora nata. O meu corpo retraiu-se só de ouvir a palavra. Ao mesmo tempo, surgiu uma sensação agradável de formigueiro na ponta dos dedos.

Como se soubesse o que se passava dentro de mim, o padre foi mudando o discurso de um ponto de vista católico para as mesmas teorias holísticas e integrativas partilhadas por Jordi pouco antes, na Catedral. O meu anfitrião continuou a explicar que, independentemente das nossas crenças, ao longo das nossas vidas, entre os 40 e os 50 anos de idade, começamos a sentir uma urgência em questionar, explorar e transformar alguma coisa dentro de nós. Podemos abraçar esse impulso e tornar-nos exploradores do nosso eu interior ou ignora-lo e seguir em frente, com menos consciência para receber a fase seguinte da vida. Os jesuítas – inspirados pela experiência de Santo Inácio – acreditam que todos devemos mergulhar profundamente nesta oportunidade de transformação. Para isso, disponibilizam programas para guiar qualquer pessoa que se sinta compelido a abraçar o processo. “Este é o propósito deste Centro”, disse-me, enquanto a porta do elevador se abria no último andar do edifício.

Convidou-me a entrar numa sala lindíssima com chão de madeira e praticamente vazia. Pousada no centro, estava apenas uma taça vazia, iluminada pela luz que entrava através de uma claraboia, diretamente acima. “Não nos importa se és budista ou muçulmana ou ateia. Se entrares nesta sala de meditação com a tua taça interior vazia, se silenciares o teu ego, se te renderes, podes permitir que a luz preencha o teu espaço. Foi isso que Santo Inácio percebeu exatamente a 24 de março de 1522, o dia em que atingiu a iluminação.” No momento em que o padre mencionou a data, a sensação de formigueiro nos dedos espalhou-se pelo corpo todo.

Tinha passado o dia a ouvir falar sobre todas estas teorias como se fossem respostas às minhas constantes dúvidas internas sobre fé e religião. Começava a entender que talvez não precisássemos deste ou daquele simbolismo para aceder à nossa espiritualidade. Estava a ficar claro que não são o Cristianismo, o Hinduísmo, o Islão ou as teorias da Nova Era que detêm a verdade absoluta e inquestionável sobre a transcendência. Começava a fazer sentido que, desde que estivesse determinada a seguir o caminho da autodescoberta, poderia tornar-me um ser humano melhor. Ao fazer isso, estaria a fazer a minha parte para o bem maior da humanidade.

E foi enquanto eu me perdia nestes pensamentos que o padre mencionou aquela data especial. Uma data tão familiar e tão importante para mim que fez soar campainhas internas quando a ouvi e regressar a uma atenção cuidada ao que o meu anfitrião narrava. No mesmo dia, 24 de março, mas 450 anos depois, eu nasceria. Santo Inácio resolveu o mistério da existência no mesmo dia em que cheguei a este mundo, 5 séculos mais tarde.

Em qualquer outra altura, eu teria achado aquele facto apenas uma coincidência curiosa e seguiria em frente. Mas aquele dia tinha-se tornado tão cheio de revelações e epifanias que decidi aceitá-lo como um sinal.

Então, eu – uma mulher de pouca fé, uma exploradora do misticismo sempre à procura de falhas – rendi-me. Rendi-me a esse dia e a tudo o que ele me ofereceu, rendi-me à minha teimosia e mau humor e até me rendi momentaneamente ao meu ego que, naquela manhã, tanto insistira que Manresa não tinha nada para me oferecer.

O que há de tão especial em Manresa? Agora posso dizer que é o lugar onde eu, depois de tantos anos dispersa, a vaguear, perdida em tantas teorias diferentes, fiz as pazes com a minha fé. Meu Deus, que caminho tenho agora pela frente agora!