Quando os planos falham

Os melhores planos são aqueles que começam aparentemente falhados para, afinal, conduzirem a experiências incríveis que, de outra forma, teriam ficado perdidas. Esta foi a conclusão que tirei do fim de semana que tinha organizado para participar numa atividade numa aldeia perdida algures na serra da Estrela, onde queria muito ir. Não cheguei à Serra da Estrela, muito menos participei na atividade, mas fui acolhida por um lugar muito improvável que me ofereceu a única coisa que eu, mesmo sem saber, estava realmente a precisar: paz de espírito.

A semana começou com um convite da Junta de Freguesia de uma pequena aldeia da Serra da Estrela para participar e escrever sobre a recriação de uma atividade ancestral, uma forma de preservar os saberes de outrora e passá-los aos mais jovens. Este é o género de trabalho que adoro, em que antecipo falar com os mais velhos e ter a oportunidade de recolher inúmeras histórias e conhecimentos de antigamente. No entanto, a meio da semana, recebi uma mensagem a informar que a atividade iria ser adiada. A minha visita naquela data deixava de fazer sentido.

Entretanto, já tinha desenhado – e iniciado – um percurso de dois dias para lá chegar, com passagem por outros locais que também queria conhecer. Normalmente aproveito as minhas deslocações de trabalho para organizar pequenas roadtrips e conhecer pequenos segredos da minha lista de “desejos de visita” no interior de Portugal. 

Em vez de desanimar ou pensar em desistir, acolhi o imprevisto como um convite para abrandar, diminuir o número de quilómetros e demorar-me mais nos locais em que tinha planeado apenas passar. Tinha agora disponíveis os melhores ingredientes para me deixar deslumbrar: tempo e imprevisibilidade. 

Cheguei à minha primeira paragem mais cedo que o previsto e, em vez de me acomodar e preparar para um serão de descanso, larguei o carro, a mochila, as solicitações externas, os sapatos e, descalça, comecei a andar pelo caminho que começava mesmo em frente à porta da casinha que me iria acolher nessa noite. 

Pracana Cimeira, no concelho de Mação, em plena Beira Baixa, tem uma população de sete habitantes. A estrada alcatroada termina na última casa da aldeia e tudo o que se ouve são os pássaros, o restolhar dos ramos das árvores quando o vento passa e a água que corre abundantemente quer das duas fontes que existem na aldeia, quer no ribeiro que convida a um mergulho.

Em lugares como este, quando o ruído externo abranda, o volume interno do que habita na mente tende a aumentar. A semana anterior fora muita ansiedade e preocupação. E claro que isso tudo veio ao de cima enquanto caminhava sozinha, rodeada de silêncio. Num primeiro momento, zanguei-me comigo mesma por estar num lugar tão privilegiado e, em vez de usufruir, estava a deixar-me invadir por uma sucessão de histórias e preocupações. Depois, obrigando-me a umas quantas respirações mais profundas, optei por, em vez de seguir a enxurrada de drama que a minha cabeça tende a criar, aproveitar para fazer uma espécie de purga interna e deixar ali, enterrados, todos aqueles hábitos mentais que não me estavam ajudar a seguir em frente. 

À medida que avançava serra adentro, fui fazendo o exercício de, em vez de seguir a minha mente em imaginações de futuros catastróficos, optar por, a cada passo, sentir os pés a tocarem o solo, tomar consciência da entrega do peso do meu corpo à terra e ouvir com atenção o som de cada uma das dezenas de pássaros que passavam por mim. Relembrei-me de uma das muitas lições resultantes da minha prática de meditação: podemos sempre escolher onde pousar a nossa melhor atenção.

Dando-lhe tempo e permitindo-me a mim dar-me espaço, a Natureza tem o poder de me sossegar. O mundo natural e selvagem, onde tudo é presente, tudo é agora e nada mais existe para além do momento atual, relembra-me que o futuro que crio na minha imaginação é apenas isso mesmo: imaginação! Desta forma, tenho a grande vantagem de poder imaginar (e, consequentemente, criar) cenários diferentes e muito mais alinhados com o que sonho para o meu futuro. As boas notícias é que este é um dom comum a todos os seres humanos.

No dia seguinte acordei cedo, como é meu hábito e, inspirando aquele cheiro a terra e a verde, tudo o que não me apetecia era ir embora. Antes de partir, fiz a promessa de regressar ali ainda este verão e segui para uma outra paragem mágica onde, por ter agora ganho tempo para abrandar devido ao cancelamento inesperado, me esperava – ainda sem o saber – uma senhora com uma história de vida maravilhosa que generosamente partilhou comigo.

Mas essa fica para a próxima publicação!

Amores e Despedidas em Lisboa

Lisboa. Contemplar o Tejo

Apesar da minha opção de um estilo de vida meio nómada, vivendo nos últimos anos permanentemente entre viagens, os intervalos em que regressava a Lisboa eram preenchidos com uma alegria de estar perto das minhas origens, numa cidade lindíssima, com uma luz muito própria, acolhedora e onde viviam algumas das pessoas que mais amo. Lembro-me em particular dos anos em que trabalhei no Reino Unido e da boa sensação que crescia em mim sempre que se aproximava a data de ir a Portugal de férias ou de fim de semana prolongado.

No rescaldo de uma pandemia, num desses regressos, quando percebi que não iria ser possível voltar a Inglaterra, achei que esta estadia inesperada em Lisboa poderia ser aproveitada para honrar a minha cidade e usufruir dela com tempo, calmamente, permitindo-me espaço para perceber o que iria fazer da minha vida a partir dali. Mal sabia eu que, nessas minhas caminhadas pelas suas ruas, Lisboa iria revelar-me mais do que a confirmação da paixão que tenho por ela.

Passei um par de meses a vaguear por Lisboa, em dias sem pressa e sem planos, apenas a usufruir. No meu vagar numa cidade que, durante tantos anos me conheceu apressada, optei por observar as ruas como se nunca as tivesse visto antes. No Rossio, houve um dia que parei mesmo em frente ao Teatro Nacional D. Maria II. Quantas vezes já teria ali estado? Incontáveis. No entanto, tenho a certeza de que, naquele dia, foi a primeira vez que olhei de facto para a sua fachada. Está lá desde 1846, mas só naquele momento é que os pilares, as janelas e as belas estátuas que guardam a entrada principal começaram a existir para os meus olhos.

Tomei também consciência que, ao contrário de Londres, uma cidade enorme e impessoal onde cheguei a sentir o peso da solidão, em Lisboa não é difícil encontrar velhos amigos. Aconteceu mais que uma vez, nestes passeios sem rumo, encontrar um rosto familiar que se sentou, por acaso, na cadeira vazia ao meu lado no metro. E, aproveitando a coincidência, decidirmos sair juntos na mesma estação para caminhar até uma das esplanada na Rua Cor de Rosa do Cais do Sodré e falar sobre a vida, sobre chegadas, partidas e planos para o futuro. E, no caminho, paramos, de repente, maravilhados pelos artistas de rua a tocar na Rua Augusta, tomando consciência de onde estávamos: uma das mais bonitas ruas do mundo que liga o centro da cidade ao rio Tejo, terminando num impressionante Arco do Triunfo, abrindo-se para o Terreiro do Paço, onde a cidade se rende ao rio.

Foram meses muito bons estes, em que confirmei, neste meu ritmo lento, o meu amor por Lisboa também em lugares tão familiares como o Chiado que me acolhera durante os anos da minha vida académica, onde lojas hipster e restaurantes de cozinha de autor florescem onde quer que haja um pequeno espaço. Ou o velhinho Bairro Alto que guarda alguns dos segredos irreveláveis da minha adolescência que, em paralelo com casas de Fado e restaurantes típicos, acolhe galerias de arte, alfarrabistas, ateliers de artistas, lojas de tatuagens, bares e discotecas. 

Lisboa é o local no mundo onde nasci, onde cresci e onde comecei a ser a pessoa que sou hoje. Tem sido testemunha do melhor e do pior que a vida me tem proporcionado. Foi tão bom sentir-me acolhida por ela nesses meses, dando-me tempo para que ela ao mesmo tempo me revelasse que o meu futuro, pelo menos o futuro imediato, não passaria por ela. Nos meus passeios, Lisboa mostrou-me que se estava a deixar conquistar pela gentrificação, pela pressa desmedida, pelo turismo de massas, pela descaracterização. Lisboa estava com pressa de usufruir do protagonismo que os olhos internacionais, de repente, lhe tinham dado e uma parte de si, deixou-se encantar, sem pensar nas consequências. E eu, que estava exatamente no movimento contrário, numa busca pela vida vivida com vagar, de forma mais autêntica e perto da natureza, percebi que, para continuar a amá-la, tinha de me afastar. 

Decidir que, agora que iria ficar a viver em Portugal, não era em Lisboa que ia morar, fez dela uma cidade ainda mais bela e ensolarada, confirmando o meu amor incondicional por ela. Sentada tranquilamente junto ao Tejo a comer um gelado artesanal, perto do Cais das Colunas, despedi-me em vésperas de me mudar para o Alentejo, onde vivo atualmente e de onde parto e regresso das minhas viagens e aventuras pelo mundo. Esta decisão reforçou o fascínio e orgulho que tenho pela minha cidade natal em que ainda confio que um destes dias talvez me diga que chegou momento de voltar a acolher-me por inteiro.

O discreto segredo espiritual da Catalunha

Seu de Manresa

O que há de tão especial em Manresa, uma cidade industrial na Catalunha central, em Espanha? Por que haveria de querer lá ir? Mal sabia eu que, naquela manhã em que todo o meu ser resistia em entrar no autocarro que me levaria até lá, aquela viagem estava prestes a mudar radicalmente a minha perceção sobre a fé. 

À primeira vista, parecia que, além da famosa Basílica de Santa Maria de la Seu e da caverna de Santo Inácio de Loyola, pouco mais havia de interesse naquela cidade. A minha mente continuava a dizer-me que não valia a pena a visita. Ficar mais alguns dias em Montserrat a explorar aquele local mais profundamente parecia-me uma opção melhor. Mas, apesar do ruído do meu cérebro, alguma coisa que eu não sabia explicar empurrava-me para Manresa.

À chegada, fui recebida por um tempo nublado, húmido e desconfortavelmente quente. Não ajudou com o meu mau humor. Andei para cima e para baixo na rua onde me esperavam para almoçar, mas não consegui encontrar o restaurante que me prometera a melhor paella vegetariana da região. Quando decidi olhar para cima em vez de para baixo, encontrei-o: no primeiro andar de um prédio, a porta abria-se para uma sala de jantar simples, minimalista e elegante. Quando a paella chegou, acompanhada pelo sorriso acolhedor do chef, percebi que estava a esforçar-me demais para manter o mau humor. Tudo estava delicioso e feito com tanta dedicação. Nem que fosse apenas para honrar o trabalho do Chef, seria melhor se me rendesse às circunstâncias, esforçando-me por abraçar um estado de espírito mais relaxado.

Tinha tomado a primeira decisão sábia do dia: alterar o meu estado de espírito. Como frequentemente acontece, a realidade começou a mudar em concordância. A partir de então, Manresa começou a revelar-se como o lugar certo para estar naquele preciso momento . Da minha parte, só precisava estar disposta a dar-lhe uma chance.

Conheci Jordi Piñero, um historiador e investigador cujo trabalho se foca nos aspetos holísticos dos monumentos históricos de Manresa. Jordi convidou-me a caminhar com ele até à Catedral enquanto explicava como foi cuidadosamente construída num lugar muito especial: uma forte corrente telúrica – o movimento geomagnético gerado pelo campo magnético da Terra que fluía paralelo à superfície terrestre. Ou, de outra perspetiva, um campo de energia com o poder de influenciar o nosso bem-estar. O meu cérebro, mais dado a ceticismos, olhava para uma igreja católica gótica do século XVI e perguntava-se se isso não seria apenas uma coincidência. Ou conversa para turistas! Naquela época, as pessoas não tinham acesso ao conhecimento que temos atualmente e certamente não possuiam os recursos científicos para analizar todas essas correntes e movimentos geomagnéticos.

Enquanto o seguia para dentro do edifício, Jordi explicou que a estrutura em forma de cruz é uma representação da figura humana de braços abertos. Ao longo da linha central, é possível observar sete círculos, “Os 7 chakras,” disse. Perguntei-lhe como é que os nossos antepassados sabiam? Como é que uma instituição tão conservadora como a Igreja Católica permitiu estas crenças? Jordi limitou-se a encolher os ombros e explicar que os chakras têm muitos nomes. “Representam o potencial humano para a evolução espiritual. É um conceito universal.”

A teoria “tudo está conectado” fez tanto sentido naquele local. Agora parecia óbvia a relação entre os conceitos de diferentes religiões e crenças, representadas num único monumento construído há mais de cinco séculos. Não me importava de ter ficado ali o resto da a tarde a ouvir as histórias de Jordi. A minha longa busca para entender a fé, o divino e o significado da vida humana estava ansiosa por saber mais. Mas, embora ainda não soubesse, havia mais à minha espera.

Segui para a Gruta de Santo Inácio, um local de peregrinação onde se crê que o Santo passou vários meses a meditar e a escrever o seu famoso livro de Exercícios Espirituais. Santo Inácio chegou ali depois de uma longa caminhada de 2000 km desde Loyola, no País Basco. Fê-lo com o intuito de descobrir, entender e consolidar a sua conexão com Jesus.

Fui recebida por um padre jesuíta que abriu a porta da caverna e me convidou a entrar. O padre narrou brevemente a história da vida do Santo e concluiu: “Para descobrir a luz, é preciso conquistar o ego. Para conquistar o ego, é preciso render-se.” A rendição sempre foi um desafio para mim, uma controladora nata. O meu corpo retraiu-se só de ouvir a palavra. Ao mesmo tempo, surgiu uma sensação agradável de formigueiro na ponta dos dedos.

Como se soubesse o que se passava dentro de mim, o padre foi mudando o discurso de um ponto de vista católico para as mesmas teorias holísticas e integrativas partilhadas por Jordi pouco antes, na Catedral. O meu anfitrião continuou a explicar que, independentemente das nossas crenças, ao longo das nossas vidas, entre os 40 e os 50 anos de idade, começamos a sentir uma urgência em questionar, explorar e transformar alguma coisa dentro de nós. Podemos abraçar esse impulso e tornar-nos exploradores do nosso eu interior ou ignora-lo e seguir em frente, com menos consciência para receber a fase seguinte da vida. Os jesuítas – inspirados pela experiência de Santo Inácio – acreditam que todos devemos mergulhar profundamente nesta oportunidade de transformação. Para isso, disponibilizam programas para guiar qualquer pessoa que se sinta compelido a abraçar o processo. “Este é o propósito deste Centro”, disse-me, enquanto a porta do elevador se abria no último andar do edifício.

Convidou-me a entrar numa sala lindíssima com chão de madeira e praticamente vazia. Pousada no centro, estava apenas uma taça vazia, iluminada pela luz que entrava através de uma claraboia, diretamente acima. “Não nos importa se és budista ou muçulmana ou ateia. Se entrares nesta sala de meditação com a tua taça interior vazia, se silenciares o teu ego, se te renderes, podes permitir que a luz preencha o teu espaço. Foi isso que Santo Inácio percebeu exatamente a 24 de março de 1522, o dia em que atingiu a iluminação.” No momento em que o padre mencionou a data, a sensação de formigueiro nos dedos espalhou-se pelo corpo todo.

Tinha passado o dia a ouvir falar sobre todas estas teorias como se fossem respostas às minhas constantes dúvidas internas sobre fé e religião. Começava a entender que talvez não precisássemos deste ou daquele simbolismo para aceder à nossa espiritualidade. Estava a ficar claro que não são o Cristianismo, o Hinduísmo, o Islão ou as teorias da Nova Era que detêm a verdade absoluta e inquestionável sobre a transcendência. Começava a fazer sentido que, desde que estivesse determinada a seguir o caminho da autodescoberta, poderia tornar-me um ser humano melhor. Ao fazer isso, estaria a fazer a minha parte para o bem maior da humanidade.

E foi enquanto eu me perdia nestes pensamentos que o padre mencionou aquela data especial. Uma data tão familiar e tão importante para mim que fez soar campainhas internas quando a ouvi e regressar a uma atenção cuidada ao que o meu anfitrião narrava. No mesmo dia, 24 de março, mas 450 anos depois, eu nasceria. Santo Inácio resolveu o mistério da existência no mesmo dia em que cheguei a este mundo, 5 séculos mais tarde.

Em qualquer outra altura, eu teria achado aquele facto apenas uma coincidência curiosa e seguiria em frente. Mas aquele dia tinha-se tornado tão cheio de revelações e epifanias que decidi aceitá-lo como um sinal.

Então, eu – uma mulher de pouca fé, uma exploradora do misticismo sempre à procura de falhas – rendi-me. Rendi-me a esse dia e a tudo o que ele me ofereceu, rendi-me à minha teimosia e mau humor e até me rendi momentaneamente ao meu ego que, naquela manhã, tanto insistira que Manresa não tinha nada para me oferecer.

O que há de tão especial em Manresa? Agora posso dizer que é o lugar onde eu, depois de tantos anos dispersa, a vaguear, perdida em tantas teorias diferentes, fiz as pazes com a minha fé. Meu Deus, que caminho tenho agora pela frente agora!

Minimalismo em Movimento: Como o Caminho de Santiago Mudou Minha Perspectiva

“Mais vale renunciar do que tentar manter cheio um vaso que vai transbordar.”

Lao Tzu, in Tao Te King

Já vos aconteceu planear uma viagem com o intuito secreto de que ela mude a vossa vida?

Esta é uma sensação pela qual já passei algumas vezes. Mas não foi a que me motivou quando comecei a planear a minha primeira aventura pelo Caminho de Santiago, que hoje, prestes a embarcar na segunda, revisito. 

Nessa altura eu achava que já tinha transformado a minha vida vezes de mais. A minha motivação para fazer o caminho era apenas um contacto próximo com a natureza, uma apreciação do silêncio e a descoberta dos meus limites físicos. Com uma lesão na cervical, na altura bastante incomodativa, eu sabia que teria de balancear muito bem o peso, o tempo de caminhada e a qualidade do descanso. Tudo isto com as despesas muito bem controladas.

Comecei a estudar a mochila e o que colocar lá dentro uma semana antes. O que é que me ia fazer realmente falta? Um livro! Era uma viagem de quase 10 horas de autocarro, haveriam tempos mortos a partir do meio da tarde e tinha planeado uns dias de descanso no final. E eu nunca viajo sem livros! Desta vez estava disposta a levar apenas um. Um caderno e uma caneta, exactamente pelas mesmas razões que o objecto anterior. A máquina fotográfica, evidentemente. Água e alguns alimentos de recurso. Produtos de higiene pessoal incluindo champô, gel de banho, creme hidratante, escova e pasta de dentes, protector solar, creme das mãos e escova de cabelo.

Mesmo ainda sem ter separado a roupa, já a mochila transbordava e pesava consideravelmente, na sua modesta capacidade de 20 litros. Percebi que, embora ainda faltasse uma semana, a minha caminhada já tinha começado. Talvez fosse melhor tornar-me um pouco mais curiosa e humilde sobre o que é que o Caminho poderia ter para me ensinar. 

Era evidente que precisava repensar as minhas escolhas: o livro pesava e ocupava espaço. Fora! O caderno, troquei-o por um pequeno bloco de notas que cabia no bolso das calças. A máquina fotográfica implicava levar o carregador de baterias. Era um disparate, tinha a câmara do telemóvel. O cantil de água ficou assim como alguns saquinhos de frutos secos para uma emergência.

Quando cheguei à bolsa de produtos de higiene senti-me ridícula. Champô e gel de banho? Cremes da cara e das mãos? A bolsa regressou para dentro da mochila apenas com uma pequena barra de champô sólido, protector solar, um pente, a escova e a pasta de dentes. 

Felizmente para a roupa, tinha entretanto desenvolvido outra qualidade na minha selecção e acabou por ser mais rápido: 2 t-shirts, 2 pares de cuecas, 2 pares de peúgas, 1 par de calções, um vestido leve (nunca se sabe!), um fato de banho, uma pequena toalha e um par de chinelos para arejar os pés no final do dia. Mais a roupa que levava vestida: calças, t-shirt, camisola quente e casaco impermeável. 

De entre as tantas lições inesperadas que me aguardavam neste Caminho, aliviar o peso da bagagem foi a primeira que revolucionou a forma como viajo até hoje. Agora, a dar os primeiros passos na preparação de nova caminhada até Santiago, recupero esta sabedoria que trouxe comigo da primeira. Sobretudo porque, passados estes anos, para além de uma cervical sensível, ganhei também uma cabeça de fémur de titânio e uns intestinos reativos ao glúten.

Se, como eu, queres evitar peso desnecessário na tua bagagem e desfrutar ao máximo da experiência da viagem, deixo aqui quatro reflexões que sigo sempre que faço as minhas malas:

1. Planear com antecedência: Fazer uma mala à última da hora não é boa ideia. Perdemos o discernimento e acabamos por colocar coisas a mais, embaladas pela ansiedade da pressa. Lembro-me de uma vez, ainda a trabalhar na televisão, ter sido informada que tinha de estar em Los Angeles para uma reunião dali a dois dias. Aliada à excitação de ir conhecer esta grande cidade, veio o stress de não saber o que esperar em termos de meteorologia e não ter muito tempo para refletir em conjugações versáteis. Chegada ao momento do check in no aeroporto com uma mala a rebentar pelas costuras de roupa da qual metade não usei, dei conta que me tinha esquecido do essencial: – o passaporte! Atualmente começo por fazer uma lista dos itens a levar. De seguida divido-os em indispensáveis, essenciais e prescindíveis e vou selecionando à medida que vou avaliando o peso que estou disposta a carregar comigo. Em matéria de vestuário, escolho peças versáteis que possa combinar entre si, diminuindo o número de peças.

2. Escolher o equipamento certo: Planeei visitar o meu irmão em Norfolk na altura em que ele lá esteve em Erasmus. Era inverno e sabia que ia encontrar neve e muito frio. Olhei para a maior mala que tinha no armário e atirei lá para dentro todas as camisolas quentes, meias de lã, casacos, cachecóis e gorros que encontrei. Assim que comecei a descer as escadas do prédio, na saída para o aeroporto, percebi que tinha feito asneira. Apesar de ser de qualidade, a mala era enorme e eu abusei de todo o espaço que ela me disponibilizou. As rodas mal deslizavam e eu tinha de a puxar com as duas mãos para conseguir transportá-la. Já no Reino Unido – que não é famoso pela fácil acessibilidade na sua rede de transportes públicos – subir e descer escadas de metro e comboio foi uma aventura muito suada. A certo momento, um senhor inglês prestável, ao ver-me desesperada a tentar subir um infindável lance de escadas com a mala atrás, ofereceu-se para me ajudar. Arrependeu-se assim que pegou naquele monstro gigante e lhe tomou o peso. Mas não deu parte de fraco. Chegou ao cimo da escada branco e a escorrer suor. Aposto que nunca mais se ofereceu para ajudar “donzelas em apuros”. Hoje prefiro mochilas com boas proteções para as costas, troleis pequenos e resistentes com um sistema de rodas deslizantes eficaz. Sei que, limitando o tamanho da minha bagagem, terei necessariamente de limitar também as escolhas do que coloco lá dentro.

3. Utilizar organizadores de bagagem: Aprendi a usá-los numa roadtrip pelo sul da Europa em que, a cada dia, ficava num local diferente. Sempre em movimento, fazer e desfazer a mala era uma tarefa diária. Ao terceiro dia tinha exatamente o mesmo número de peças mas, com o caos instalado, já não as conseguia enfiar todas dentro da mala. Foi quando a minha companhia de viagem me apresentou os organizadores. Se ao início podem parecer uma redundância, depois desta experiência garanto que não são. Os organizadores de bagagem ajudam a maximizar o espaço e a manter as coisas arrumadas durante a viagem. O que faço é separar os objetos por categorias e utilizar sacos individuais para cada uma delas.

4. Desfrutar do simples: Quando se fazem 100 kms a pé, tendo de transportar às costas tudo o que é preciso para sobreviver durante esse tempo, o peso e valor de cada objecto que decidimos transportar na mochila ganha nova perspectiva. A experiência de carregar apenas o essencial fez-me reconsiderar o que realmente importa. A simplificação tornou-se uma escolha, não apenas para viagens, mas para o meu dia a dia. Desde então, tento adotar uma abordagem mais consciente em relação a tudo o que possuo, optando por qualidade sobre quantidade e valorizando cada objeto pelo seu propósito e significado. Essa mudança de mentalidade não só aliviou o peso físico das minhas viagens, como também trouxe um novo significado ao meu conceito de liberdade. Caminhar – e viver o dia a dia – sem peso desnecessário às costas, permite-me estar totalmente presente no momento. Afinal a riqueza da vida não está na quantidade de bagagem que levo ou naquilo que possuo mas sim nas experiências que vou guardando na mochila ao longo do percurso da vida.

Serra da Lousã: 6 Descobertas numa Caminhada Desafiante

O verão passado propus-me a uma caminhada pela serra da Lousã. Normalmente estou à vontade para me fazer ao caminho sozinha. Tenho alguma experiência em montanhismo e este percurso anunciava-se fácil. Coisa para durar umas duas horas.

No início, o trilho oferecia uma estrada larga, bem definida, com sombras e fresco. Foram dez minutos neste cenário até encontrar o rio. A partir daqui começou a subida. Nada de especial. Depois um pouco mais íngreme. Fazível. Ainda mais íngreme. E uma hora depois já tinha de usar três apoios (dois pés e uma mão) para trepar. Havia pedras altas e rochas imponentes. “Se o percurso está classificado com dificuldade média, esta subida há-de acabar não tarda,” pensei. E acabou. Uma hora e meia depois, para dar lugar a uma descida acentuada e de cascalho que me fazia escorregar a cada passo. Meia hora a deslizar encosta abaixo. Terminou. Outra subida. Desta vez de terra batida mas bastante inclinada. Mais um hora. Já ia com as duas horas que tinha previsto e mais meia quando finalmente cheguei à aldeia de xisto. Linda. Mágica. Em ruínas. 

Parei por momentos para beber água. Continuei enquanto trincava uma tosta. Talvez me tenha distraído com a tosta, com a aldeia ou com os meus pensamentos, quando dei por mim já não havia sinais do trilho. Não foi muito tempo que estive desatenta, mas dado o meu inexistente sentido de orientação foi o suficiente para me perder. 

Tinha três hipóteses: 

  • Aventurar-me por outro caminho ali ao lado, correndo o risco de me perder ainda mais na serra.
  • Seguir pela estrada asfaltada, sabendo que teria 18 quilómetros pela frente até ao local onde tinha deixado o carro.
  • Regressar pelo trilho que tinha feito, conhecendo as dificuldades que já me tinham sido apresentadas no caminho até ali.

Uma viagem que iria terminar em meia hora perspectivava-se agora bem mais longa.

Nos caminhos que já percorri pelas serras do mundo sempre tive dificuldade em lidar com as subidas. Olho para elas e acho que não sou capaz, as minhas pernas vão ceder, vai faltar-me o fôlego. Sofro por antecipação. É uma espécie de vertigem mas ao contrário. 

O que me fez optar por voltar pelo mesmo caminho foi exactamente o facto de ter passado tanto tempo a subir. Agora seria quase sempre a descer, havia de ser rápido. As subidas que passariam a ser descidas não deviam ter sido assim tão complicadas porque afinal eu tinha-as conseguido fazer.

Três dificuldades: Algum cansaço, sol abrasador e falta de água.

Avancei. Ficar ali parada é que certamente não me ia levar de volta ao início. 

Nestes passos de regresso percebi que afinal a subida que eu tinha empreendido era mesmo difícil e demorada. O que tornou a respectiva descida também ela um desafio. Espantei-me de a ter conseguido fazer e quase que me alegrei pela forma que o destino tinha arranjado para me mostrar a real dimensão das minhas capacidades físicas.

Enfrentar a adversidade da montanha é como concretizar um sonho ou perseguir uma paixão. Se não, vejamos:

1. Corra melhor ou pior estamos no percurso que escolhemos

Os nossos sonhos, tal como os caminhos, acontecem porque decidimos dar o primeiro passo. Seja para tomar contacto profundo com a natureza e paisagens que só estão acessíveis através de caminhos de pé posto ou para correr atrás de um propósito, é necessário decidir que queremos fazê-lo. E a seguir, precisamos agir.

2. Mesmo com as adversidades inerentes ao risco, o resultado é compensador

A concretização de um sonho pode falhar. Mas a maior frustração vai para quando nunca se tentou. Tal como uma caminhada. Há locais e paisagens que nunca conheceria se nunca tivesse penetrado no coração de algumas serras por veredas onde só cabem as minhas botas de caminhada, uma de cada vez. As aldeias, os riachos e as árvores que vi, os sons e os cheiros da montanha dificilmente os teria experimentado se tivesse optado por não sair da comodidade do carro na estrada asfaltada.

3. Pequenos objectivos somados geram grandes resultados

Por vezes a distância a percorrer até ao destino a alcançar é longa e esse facto pode ser desmotivador. No meu caminho de regresso, cansada, sem água e com o sol a queimar pensava: é só chegar ao cimo daquela ladeira e descanso, se conseguir passar aquela curva, depois o caminho até à ruína é mais fácil ou no final deste destrepe há o rio, posso refrescar-me. E assim sucessivamente. 

4. Foco no momento presente

No meu percurso de regresso houve uma altura em que dei por mim a escorregar várias vezes e a desequilibrar-me. Abrandei e pensei que arriscar-me a torcer um pé não podia ser uma hipótese. Por isso trouxe mais atenção à minha passada, abrandando o ritmo e assegurando-me que colocava os pés em locais firmes. Abandonei a ansiedade e a urgência de chegar. Por vezes, ao decidirmos concretizar um sonho deixamos a nossa mente pousar num futuro onde o caminho já foi percorrido. O futuro é algo que ainda não existe e se desviarmos a nossa  atenção do que estamos a viver no presente corremos o risco de que nunca chegue a existir.

5. Silenciar as vozes traiçoeiras

É importante reconhecermos quando as nossas vozes internas estão apenas a tentar boicotar-nos. Muitas vezes essas vozes são apenas os nossos medos infundados. A dada altura do meu caminho, no início de uma subida inclinada e sem sombras, surgiram vozes na minha cabeça que repetiam constantemente: “Não tens pernas para isto. Estás exausta. Não tens água. O sol que está vai acelerar a desidratação. Pára!” Estas vozes somos nós mesmos. Como tal temos o poder de as controlar. Temos autoridade sobre elas. Foi assim que decidi por um ponto de ordem e mandá-las calar.

6. Celebrar cada vitória, pequena ou grande

Tomamos consciência do nosso valor real. Arriscar a sair da zona de conforto, concretizar um sonho é um grande feito. A modéstia excessiva, a falta de valorização das nossas verdadeiras capacidades traem-nos tanto quanto a presunção exagerada. Há que gozar o momento em pleno, sermos honestos conosco mesmos. Nesta minha experiência tive a oportunidade de perceber que as minhas capacidades físicas e de determinação eram muito mais fortes do que eu julgava. Mais, ao fazer o caminho de regresso, o destino demonstrou-me que tenho muito mais potencial para fazer subidas íngremes do que alguma vez eu tinha julgado. Olhando para trás agora parece-me que nem foi assim um esforço tão grande como na altura eu quase me convenci que era.  

Viajar e por este mundo de forma consciente e sustentável e partilhar esta experiência seja através da escrita seja com quem desejar viajar comigo, é o que faço e o que me faz feliz. O caminho que tenho trilhado para chegar onde estou é muito semelhante à minha experiência na serra da Lousã no verão passado. Os métodos aprendidos pela experiência em caminhadas, em mindfulness e na escrita têm sido boas ferramentas nesta epopeia. Afinal na vida tudo se toca.