Água mole em pedra dura

Por vezes acontece-me visitar um sítio que é tão bonito e onde vivo experiências tão boas que regresso com a certeza de que trago comigo tanto material para escrever. São lugares que me oferecem momentos tão especiais que mal posso esperar pelo momento de me sentar e começar a criar texto à volta dessa aventura. 

“Uau!” penso, “tantas metáforas, tantos pensamentos e tantos paralelismos com a vida que posso tirar daqui, enquanto partilho a história deste lugar”. Mas quando chega o momento de me sentar ao computador e abrir o programa de edição de texto, nenhuma ideia me surge. Tento escrever uma frase ou outra e nada me agrada. Nenhum caminho de escrita se abre. Por mais que tente é uma sucessão de escreve e apaga que testa a minha paciência e me faz zangar-me comigo mesma e perguntar-me se escrever é mesmo o que quero continuar a fazer. 

É precisamente isto que tenho vivido nestes últimos dias, no regresso de uma viagem à Foz do Cobrão, uma aldeia no concelho de Mação, no coração da Beira Baixa. Esta povoação está encaixada entre dois cursos de água (a ribeira do Cobrão e o Rio Ocreza) e é um lugar muito especial. Foi uma visita muito boa mas agora que quero tanto escrever sobre ela, bloqueio e nada do que me sai desta dança dos dedos sobre o teclado, parece ter a qualidade suficiente para a honrar. Escrevo e apago e volto a escrever para voltar a apagar, cada vez mais irritada comigo mesma. Se escrever e contar histórias é a minha paixão (porque é!), isto não devia acontecer-me.

Quero tanto contar sobre o enorme pedregulho que obrigou o ribeiro do Cobrão a encontrar formas de continuar o seu curso e, apesar daquele obstáculo enorme e intimidante, conseguir cumprir o seu propósito de desaguar no rio Ocreza. Que metáfora tão perfeita da natureza para descrever a vida: um pequeno e discreto ribeiro que, na sua descida pela encosta da Serra das Talhadas, se deparou com uma enorme pedra mesmo no centro do seu leito. Mas, em vez de se sentir intimidado, persistiu. Reunindo todos os recursos que fazem da água um dos elementos mais resilientes da natureza, conseguiu, com suavidade, contornar o intimidante obstáculo. Com o passar dos anos, a pedra que parecia intransponível, foi-se moldando à teimosia da água. Este fenómeno natural deu origem a um lugar tão peculiar que se tornou lindíssimo. Mas o meu texto hoje não flui como a água. Está encravado atrás do pedregulho da frustração que cresce perante o meu bloqueio.

Frustra-me saber que deveria ser fácil deixar a imaginação fluir e escrever uma outra história sobre como se talvez não tivesse existido aquela pedra que, em conjunto com a teimosia da água, fez nascer aquele raro fenómeno natural, dificilmente teria prendido o olhar dos romanos que, na época da sua ocupação da Península Ibérica, aí se estabeleceram. Não é um ponto de partida perfeito para desenvolver uma narrativa sobre os obstáculos que a vida nos coloca, os desafios que nos lança, as pedras que nos põe no caminho e como, por vezes, não temos de os destruir ou ultrapassar com pompa e circustância porque, com paciência e flexibilidade, eles revelam-nos afinal uma riqueza e preciosidade imensas na construção do nosso propósito?

Mas não, não me sai nada de jeito. Nada do que escrevo honra a beleza daquele lugar e da história surpreendente dos seus primeiros habitantes. Porque há mais: é que os romanos, pouco depois de chegarem, iludidos pela floresta frondosa e pela água abundante, rapidamente descobriram que a terra não era assim tão fértil para o cultivo. Ainda assim, tal como a água que contornou a pedra, optaram por ficar e explorar mais a fundo o potencial daquele lugar que parecia tão mágico. Em boa hora o fizeram porque o ribeiro escondia mesmo um segredo precioso. Um segredo que precisava de quem tivesse tempo e paciência para o desvendar. Pelo leito do Cobrão viajavam pequenas partículas de ouro. Foi um olhar contemplativo, uma observação demorada e concentrada que permitiram a descoberta deste tesouro. Um tesouro que se transformou na razão para que a população não só decidisse estabelecer-se de forma permanente como também florescer. 

Ainda hoje é possível observar as Conheiras – formadas por centenas de pedras roladas, resultantes das lavagens de terra para a extração do ouro – ao longo do seu percurso a dois passos da aldeia e que confirmam a atividade de garimpo do ouro naquele local ao longo dos séculos. Qual a probabilidade de existir uma atividade destas, no interior quase esquecido de Portugal e que durou até à primeira metade do século XX, quando finalmente o ouro começou a escassear? Mas hoje não consigo tornar isto numa história bonita e cativante.

O melhor do meu dia foi quando, ao passear pelas ruas da aldeia, me cruzei com uma senhora que trazia um cão à trela numa mão e um saco de compras na outra. Parecia que estava à minha espera para me contar a sua história, tão bonita como todas as metáforas que a aldeia já me tinha dado até àquele momento.

A D. Aurora (chamo-lhe assim porque não sei o nome dela) aproximou-se de mim,  intrigada com a minha presença solitária, num lugar tão improvável para ser visitado por gente de fora. Quando lhe expliquei que gostava de conhecer precisamente lugares improváveis e escrever sobre eles, decidiu acompanhar-me na pequena caminhada e contar-me como tinha ido ali parar. 

Esta senhora encantadora nasceu e passou a sua infância em Foz do Cobrão. Mudou-se para Lisboa na juventude e por lá ficou, casou e teve uma filha. Apesar da vida se ter enraizado na capital, no seu íntimo, a D. Aurora mantinha o desejo secreto de voltar à sua aldeia depois da reforma e terminar os seus dias naquele lugar tão bonito mas tão remoto. Nunca se atreveu sequer a mencionar esse seu sonho quer ao marido, quer à filha, muito menos ao neto porque quanto mais os anos passavam e as vidas se firmavam na grande cidade, mais improvável se tornava de realizá-lo. 

Foi precisamente o neto, numa viagem à terra da avó no período de férias escolares que, ao passar pela escola da aldeia, disse para a mãe: 

–  Que linda! Esta sim, é a escola que eu gostava de frequentar. 

Esta observação do filho ocupou a mente da mãe durante todo o caminho de regresso a Lisboa. Graças à pandemia, agora trabalhava remotamente e, numa primeira abordagem, não encontrou nenhuma razão para não satisfazer aquele desejo do filho, a estudar  numa escola na Amadora onde cada vez encontrava mais desafios quer de aprendizagem, quer de integração. 

Em menos de um mês tinham concluído o processo de transferência do rapaz e a mudança para a aldeia estava feita. Trouxe com ela a mãe e o pai. A D. Aurora não só cumpriu o sonho de regressar à sua aldeia como veio acompanhada de toda a família. Num processo fácil, suave e natural de reorientação do curso da vida. Tal como aquele ribeiro. Terminou o seu relato a contar-me que desde que ali está, quase há um ano, não foi só o neto que passou a gostar mais da escola e a ter notas mais elevadas. As suas dores nas costas melhoraram, de tanto exercício que faz a subir e a descer aquelas ruas empedradas. 

– Venha para cá também! – disse-me antes de nos despedirmos. E eu, na minha eterna busca de um lugar onde me sinta em casa, disse baixinho para mim mesma:

– Quem sabe? 

Para já, opto por me deixar inundar pela sabedoria da água e, suavemente e com toda a gentileza para comigo mesmo, permito que os meus dedos naveguem pelas teclas do computador, sem me julgar pelo que me sai. E eis que surge este texto que aqui entrego. 

O que aprendi? Aprendi que por vezes o maior pedregulho que temos de transpor é aquele que transportamos dentro de nós mesmos.  

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