O Cabeço da Vida

Estará a origem da vida na Terra nas águas termais de uma pequena vila esquecida no interior Alentejano? Em 2012, a imprensa nacional levantou esta pergunta e colocou a vida com vagar vivida na vila de Cabeço de Vide no centro das atenções. Tudo por causa de uma visita de cientistas da NASA que, depois de consultarem a publicação dos resultados de uma análise das propriedades das águas da nascente da Ermida, decidiram aprofundar os estudos feitos pelo Instituto Superior Técnico. 

Na altura, o entusiasmo foi grande. As águas, com propriedades terapêuticas conhecidas há cerca de 4 mil anos e que, até então, eram utilizadas por um número relativamente controlado de utentes, poderiam ser a chave para explicar o aparecimento da vida na terra. Ao que parece, nestas águas foi identificado um sistema geológico e hidrogeológico tão raro que, além de Cabeço de Vide e de um local remoto nos EUA, apenas existe em Marte. 

As Minhas Raízes

Para os habitantes da pequena freguesia, habituados às lendas e milagres da região, a notícia não causou grande espanto. Para mim, que desde muito pequena, conheço Cabeço de Vide e tantas vezes foi palco de dias mágicos de brincadeiras à volta da pequena piscina e do bosque que a circunda, também não. Ainda hoje, olho para Cabeço de Vide com algum misticismo. 

Depois de adulta, as visitas a Cabeço de Vide tornaram-se mais raras e espaçadas. Sendo uma parte da minha família de Alter do Chão, a minha presença na região era frequente, mas o trabalho foi ocupando cada vez mais o meu tempo livre. Assim, nas minhas visitas à família, sobrava pouco tempo para passeios lúdicos às famosas águas. Na verdade, desde que me tornei adulta, consigo identificar com precisão o número de visitas que fiz a esse local porque as associo a momentos importante na minha vida. Foram, muito concretamente, três.

O Primeiro Abalo

A primeira aconteceu enquanto eu estava em plena ascensão da minha carreira no mundo do audiovisual. A minha vida era, aparentemente, perfeita. Tinha um trabalho glamoroso e bem pago, uma posição social vantajosa e uma perspectiva de futuro brilhante. Fui a Cabeço de Vide e às Termas da Sulfúrea visitar os meus avós que estavam lá de férias. Eu ainda não sabia que uma grande mudança estava para acontecer na minha vida, muito menos sabia os ecos que essa mudança teria até hoje. No espaço de seis meses, tudo mudou. A minha estrutura interna foi abalada pela perda precoce de um familiar próximo, o que me levou a questionar toda a existência e a iniciar um processo profundo de busca de sentido da vida. Ironicamente, poucos anos depois, a NASA visitou o local, também à procura de respostas para a mesma questão. A diferença é que as respostas que os cientistas procuravam eram mais biológicas, enquanto que as minhas eram mais filosóficas. 

A Segunda Metamorfose

Alguns anos depois, já a NASA tinha percebido que, apesar da sua riqueza científica, Cabeço de Vide provavelmente não foi o local onde a vida na Terra começou, voltei à vila para passar uns dias com o meu avô, agora já sem a companhia da minha avó. Mais uma vez, nos seis meses seguintes, a minha vida voltou a passar por uma grande metamorfose. Ainda não tinha encontrado a resposta para o sentido da vida, mas tinha a certeza de que estava a desperdiçá-la na ilusão de uma carreira estável e de um sucesso aparente. Para me salvar, teria de desapegar-me do materialismo, desapegar-me do vício do trabalho e repensar o meu estilo de vida. Nesse mesmo ano, despedi-me do meu emprego e iniciei um processo de transformação profunda, decidida a construir uma vida onde não tivesse de vender o meu tempo em troca de dinheiro apenas para pagar contas. 

Novo Regresso

A terceira visita fiz como utente, uns dez anos mais tarde. Dessa vez, já sem a companhia do meu avô, que entretanto se juntara à minha avó, na dimensão desconhecida da existência. Fui motivada por dores insuportáveis nas costas, num período em que vivia em Alter do Chão e achava que tinha tudo para ser feliz, mas não o era. Estava a afundar-me numa espiral de desvalorização pessoal, alimentada por uma auto-estima frágil e agravada por uma relação psicologicamente abusiva. Precisava urgentemente deuma cura e nem me apercebia disso. Fui religiosamente todos os dias mergulhar o corpo naquelas águas sulfurosas, cujas propriedades terapêuticas são usadas há mais de 3500 anos, desde os tempos da ocupação romana.

Relaxei, melhorei e ouvi, pela voz de um ancião, uma das mais antigas lendas da vila. Segundo ele, em tempos remotos, a povoação original não ficava onde está hoje, mas numa zona mais baixa da colina. Essa povoação foi palco de uma batalha violenta e a quantidade de mortos foi tão grande que não foi possível enterrá-los. Os corpos em decomposição foram a origem de doenças e uma peste alastrou-se entre os sobreviventes, muitos deles gravemente feridos pelo combate. A esperança de salvação era quase nula, pelo que, em desespero, começaram a subir ao cabeço da colina, à procura de ar puro. Milagrosamente, os que chegavam ao topo e inspiravam aquela frescura, recuperavam. A notícia espalhou-se e toda a população subiu ao monte, instalando-se lá, em busca de mais vitalidade. Começaram a chamar o local de Cabeço da Vida, estando assim explicada a origem do nome daquela terra. 


Alguns séculos mais tarde, depois de mais uma visita, em apenas dois meses a minha vida também se transformou. Recuperei a vitalidade e o discernimento para me libertar da situação em que me encontrava, voltando ao caminho de uma vida com vagar e propósito. Pouco tempo depois, mudei-me para o Reino Unido, onde vivi uma das experiências mais gratificantes da minha vida: trabalhar como biógrafa de pessoas diagnosticadas com Alzheimer, ajudando a preservar as suas memórias antes que se perdessem para sempre nas mentes fragilizadas pela doença. 

Hoje, de volta ao Cabeço

Hoje voltei a esta terra encantada, talvez à procura de um novo milagre. Desta vez, ao contrário de há dez anos, tenho a consciência clara de onde estou. Sei que tenho muito para ser feliz, reuni uma bagagem de experiências nesta minha busca pela simplicidade e essência da vida, mas estou com dificuldade em reencontrar o foco. Muita coisa mudou por aqui. Sabe-se que não foi em Cabeço de Vide que a vida na Terra começou, mas as suas águas continuam a ter propriedades raras e especiais. Esses “15 minutos de fama” geraram sementes que floresceram em percursos pedestres entre o fresco das árvores, na recuperação de património natural e monumental e numa praia fluvial que ajuda a suportar os dias tórridos do verão alentejano. Ficou a recuperação de um castelo, com uma vista a perder de vista para a planície alentejana e que durante muitos anos serviu para defender a terra das invasões, nas várias conquistas e reconquistas aos árabes, num ciclo iniciado em 1160 por D. Afonso Henriques. 

Levo daqui a esperança renovada que o meu milagre também está a acontecer. Trago em mim o castelo da experiência e as propriedades raras da sabedoria, que me concedem a capacidade de reajustar a lente do foco. Percebo que também eu não tenho uma resposta clara e objetiva para o sentido da vida, mas tenho o que preciso para continuar a desbravar o meu caminho, rompendo com crenças cristalizadas e viver uma vida fora da norma, com vagar, simplicidade e propósito. 

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